pariscópio
As mil faces de Godard: filmes, TV,
imagens
por Leonardo Sette
História(s) da Utopia
Em outubro de 1999, a revista Bravo! trazia
em sua capa Bernardo Bertolucci, chamando-o de “maior cineasta
vivo”. Se a “leseira” já começava na tentativa de apontar o maior
entre todos, mais problemático ainda era eleger um diretor que
estaria longe de sê-lo, sob qualquer ponto de vista histórico,
mesmo se esta fosse uma discussão válida. Antonioni, Coppolla,
Bergman, Bresson (1901-dez1999), Rouch (1917-2004), Johann van
der Keuken (1938-2001), Stan Brakhage (1933-2003). Qualquer um
desses nomes traria ao menos algum sentido à afirmação da revista.
Até porque, um outro cineasta – ainda filmando
e muito vivo; ou ainda vivo e filmando muito – aparenta poder
portar tal título com muito mais naturalidade do que todos. Trata-se
de um certo Jean-Luc, inquieto realizador de mais de 100 títulos.
Godard, apesar de dispensar maiores apresentações, tem enorme
parte de sua obra vagando no desconhecido território do cinema
de vanguarda, e a grandiosa mostra que o Centro Georges Pompidou
acaba de lhe dedicar foi a maior oportunidade já promovida no
mundo para se mergulhar na obra de um dos mais brilhantes criadores
da história do cinema.
O que aconteceu no Beaubourg (como é geralmente
chamado o Centro Georges Pompidou) nos últimos quatro meses foi
realmente especial. Uma exposição/instalação concebida por Godard
ocupou uma das galerias nobres do centro, e as salas de cinema
projetaram todos os seus filmes, os de sua colaboradora e esposa
Anne-Marie Miéville, e mais 75 "documentos” relacionados
(documentários, entrevistas diversas, aparicões de Godard na TV).
Vale dizer, contudo, que a idéia original previa
algo ainda mais ambicioso. Como explica Dominique Païni (ex-diretor
cultural do Centro Pompidou) em texto na Cahiers du Cinéma
de abril, Godard produziria nove filmes, ao longo de nove meses.
O cineasta teria uma semana para “colheita” de imagens, duas para
montagem e, ao final de cada mês, a nova obra seria projetada
e dicutida com o publico do Beaubourg – e o filme seguinte deveria
nascer dessa discussão.
L’enfant terrible
Os
problemas entre Godard e o Centro Pompidou começaram a surgir
em torno do projeto para a exposição. A idéia inicial do cineasta
tinha como título Collage(s) de France, archéologie du cinéma
d’après JLG e remetia a sua tentativa frustrada de ministrar
um curso de cinema no College de France, instituição de altíssimo
nível em que grandes mestres dão aulas abertas ao público. Jogando
com as palavras colagem e colégio, Godard sugeria uma materialização
de Histoire(s) du Cinéma
(1987-1989) em forma
de instalação.
Em janeiro desse ano, três meses antes da data
prevista para a inauguração, o Centro Pompidou avaliou que a realização
de Collage(s) de France ultrapassaria o orçamento previsto
e Godard foi obrigado e rever seu projeto. O mal-estar chegou
aos jornais e culminou com a demissão de Dominique Païni, comissário
da exposicão. O jornal Libération acusou, posteriormente, o cineasta
de propor deliberadamente um projeto impossível – retratando Godard
como rebelde mimado, incapaz de trabalhar dentro de uma instituição
sem precisar dinamitar sua estrutura (nada que possa ser chamado
de novidade, é verdade).
Godard retrabalhou então seu conceito de exposição,
batizando o novo projeto de Voyage(s) en Utopie, à la recherche
d’un théoreme perdu (em busca de um teorema perdido), e foi
essa instalação que pôde ser vista ao longo dos últimos meses
no Centro Pompidou (leia o texto de Cezar Migliorin e veja
um mapa da instalação).
Assim, a retrospectiva Jean-Luc Godard aconteceu
dentro de uma atmosfera traumatizada de boiocote mútuo. Nenhuma
propaganda do evento foi vista em Paris, contrariando a prática
habitual do Centro Pompidou e contrastando, por exemplo, com a
imensa publicidade feita em torno da retrospectiva Scorsese, no
ano passado. Godard, por sua vez, simplesmente não apareceu em
nenhuma das duas ocasiões previstas na programação oficial.
Bonus
O único filme realizado para o evento chama-se
Vrai faux passeport (Verdadeiro falso passaporte).
Trata-se de um ensaio de 55 minutos que traz o já conhecido estilo
formal utilizado pelo cineasta em alguns trabalhos anteriores,
e consagrado em História(s) do Cinema. A novidade estilística
é que dessa vez não ouvimos a voz em off de Godard, que
preferiu isolar as aparições de letras e números na tela como
instrumento discursivo.
Como seu subtítulo insinua (ficção documentário
sobre as ocasiões de emitir julgamento sobre a maneira de se fazer
filmes), Vrai faux passeport é uma espécie de prévia
do juízo final do Cinema, no qual GODard exibe trechos de filmes
para em seguida classificá-los radicalmente como bons ou ruins,
carimbando simplesmente na tela as palavras bonus ou malus.
Dentro desse jogo, os termos em latim não somente trazem solenidade
auto-legitimadora (e ironia) mas também acrescentam um teor de
pernosticidade ao que Godard julga como mau cinema. Isso não chega
a ser surpreendente, apenas torna mais interessante a tarefa de
medir o tamanho da ousadia - ou o tamanho de Godard – perguntando-se
que outro cineasta teria coragem ou cacife para fazer um filme
assim.
Um dos pontos altos de Vrai faux passeport
é a elogiosa inserção de uma longa sequência de The Brown Bunny
(2003), de Vincent Gallo, filme que chocou muita gente em Cannes
2003. Godard "cola" logo em seguida Pickpocket
(1956), de Robert Bresson, citando esses dois filmes, lado a lado,
como exemplos "do Bem", no capítulo Eros.
Projeções
As retrospectivas Almodóvar (Cinemateca Francesa)
e Godard aconteceram quase que simultaneamente e isso ajudou,
entre outras coisas, a destacar como os dois cineastas percorreram
trajetórias praticamente inversas. Se Almodóvar iniciou a carreira
com filmes underground e, pouco a pouco, foi se popularizando
(até chegar ao Oscar), Godard se afastou do enorme sucesso de
Acossado (1960), e do putsch da nouvelle vague,
em direção ao isolamento e experimentalismo radical. A produção
dessa fase menos conhecida do diretor franco-suiço foi, naturalmente,
a parte mais rica da programação de sua mostra retrospectiva.
Mas
ao menos uma das sessões dos clássicos godardianos merece relato,
por ter ajudado estranhamente a expandir o impacto do filme exibido.
Após 20 minutos de uma exibição de Weekend à francesa (1967),
cenas inteiras começaram a se repetir e, é claro, demorou um certo
tempo para que o público começasse a se perguntar se aquilo era
mesmo coisa de Godard. O conteúdo histérico e apocalíptico do
filme apenas aumentou a confusão e, rapidamente, as rígidas regras
de comportamento de uma sala de cinema parisiense foram pro espaço.
Todo mundo começou a gritar o que quis, inclusive coisas relacionadas
ao filme, numa bizarra catarse coletiva. Obviamente, isso gerou
a impressionante sensação de que o filme havia transbordado os
limites da tela e endiabrado os espectadores. Poderia ter sido
um acidente técnico normal de projeção - bastava ter acontecido
com outro filme, mesmo de Godard, e não exatamente com o “malvado”
Weekend.
TV
Em 1973, o cineasta se muda para Grenoble (sudeste
da França) e cria com Anne-Marie Miéville o atelier SONIMAGE
(ao mesmo tempo Sua Imagem e Som + Imagem).
Godard descobre então o vídeo, e mergulha com Miéville na experimentação
formal, na qual a televisão figura como principal tema de análise
e combate.
O
mais expressivo fruto desse período é a série Six fois
deux / Sur et sous la communication (Seis vezes dois / Sobre
e sob a comunicação), realizada por Godard e Miéville para a televisão
francesa. Como o título indica, são seis episódios divididos em
duas partes de cerca de 50 minutos, exibidos em seis domingos
consecutivos, sempre precedidos pela mensagem “este programa não
oferece as características habituais às nossas transmissões”.
Ao todo são quase 600 minutos, e o Beaubourg precisou de três
noites para exibir tudo.
Formalmente, são filmes artesanais, nos quais
é frequente o uso de longos planos fixos, pontuados com intervenções
gráficas – primitivos efeitos de mesa de edição linear. Um dos
episódios, por exemplo, é inteiramente composto por uma entrevista
com o matemático René Thom, realizada por um Godard que se faz
presente apenas pela voz e pela fumaça de seu charuto em quadro.
A conversa gira em torno de uma certa « teoria da catástrofe »
e Godard dirige o diálogo, compondo uma insinuação de que o trabalho
de um matemático está próximo da poesia, ou da inocência da infância.
Em Six fois deux, Godard e Miéville alternam
diferentes metodos para questionar a TV, ora propondo simplesmente
uma linguagem diferente, ora atacando-a nominalmente dentro de
cada episódio. É o caso de um capítulo cortado da série, no qual
Godard discute com um tal de Claude-Jean Philippe, o apresentador
de um cineclube na TV. Trata-se na verdade de um nocaute humilhante,
no qual o cineasta questiona o fato de Philippe apresentar os
filmes com uma explicação introdutória para “ajudar o telespectador
a compreender”. É um material desconcertante, em que o contraste
entre a violência de Godard e a fragilidade intelectual de Philippe
chega a provocar incômodo (ou risos) no espectador.
Malus
Uma
outra parte reveladora da mostra foi a exibição das aparições
de Godard na televisão, durante os anos 80, quando o cineasta
decide frequentar o meio para melhor pô-lo em questão. Imagine
um típico apresentador de jornal do meio-dia anunciando as ultimas
sobre a Guerra das Malvinas, e em seguida voltando-se a seu convidado:
"Jean-Luc Godard, o que você acha desse conflito?".
Godard mostra-se muito pouco interessado em falar das Malvinas
e passa o resto do programa atormentando o apresentador, questionando
a duração de planos, a banalidade dos enquadramentos e a ausência
de "contra-plano". Num outro programa, chega a se levantar
para controlar uma câmera: "isso se chama plano americano",
diz. Em seguida, usando as mãos, posiciona o rosto do apresentador
em um ângulo preciso e o faz dizer uma cretina fala de encerramento.
A determinação de Godard em criticar a televisão
aparece ainda em Meeting Woody Allen (1986), que é basicamente
uma conversa de 25 minutos entre os dois diretores, montada por
Godard. "Você teria o sentimento, como eu tenho um pouco,
ou talvez muito mesmo, de que esse tv power afeta a sua
criação, exatamente como a radioatividade pode ter uma ação nefasta
sobre a saúde?" , pergunta a Woody Allen, sem se preocupar
muito com a resposta.
Não é sem motivo, digamos assim, que na exposição
Voyage(s) en Utopie, dentre os
35 monitores de vídeo, somente três estão virados para
o teto, sobre mesas. Um deles exibe sexo explícito em uma orgia
hardcore, os outros dois transmitem ao vivo dois canais de TV.
Lenda
O
público do Beaubourg parecia se deliciar particularmente com as
aparições de Godard na tela, tanto com suas agitações na TV quanto
com suas participações como ator em filmes. « Je suis une
legende », lê-se numa página de caderno no belo JLG /
JLG, auto-retrato em dezembro (1995). Godard é um mito e sabe
disso. Atuando em seus próprios filmes, diverte-se com a idéia,
colocando-se em situações supostamente rídículas: cineasta abobalhado
(Soigne ta Droite - 1987), guru com peruca de cabos de
vídeo (King Lear – 1987) ou simplesmente utilizando uma
pavorosa touca de lã (JLG / JLG). Se há nessas aparições
um certo conceito clássico (diretor que se põe em cena), as participações
nos filmes de Anne-Marie Miéville se sustentam quase que unicamente
na representatividade do mito Jean-Luc Godard. Em uma sessão do
delicado Após a reconciliação (2000), de Miéville, foi
curiosíssimo ver o público rir por puro fetiche quando o personagem
de Godard colapsa em choro solitário no quarto, numa cena, em
princípio, comovente.
Jean-Luc Godard atingiu um raro nível de imaculação
entre os criadores do século XX. Recentemente, num programa de
rádio, o crítico Michel Ciment reclamava da falência da crítica
diante de seus filmes. De fato, é difícil encontrar quem ouse
dizer algo negativo de sua obra, a não ser aqueles que acham todo
Godard insuportável. Mas se por um lado não há nada mais anti-godardiano
que a falta de questionamento crítico, por outro há o fato de
que, para muitos, Godard é Picasso.
A propósito: a próxima retrospectiva integral
do Centro Pompidou começa no dia 15 de novembro, exibindo a obra
do cineasta de animação canadense Norman Mclaren. Devem ser colocados
anúncios pela cidade, então.
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