in loco - 38o festival de gramado
Curtas: os três formidáveis

por Francis Vogner dos Reis

Babás, de Consuelo Lins (Brasil, 2010)

BabásO filme de Consuelo Lins começa com uma foto do século XIX de uma "mãe negra" e uma criança branca apoiada nela. A narração cita a frase de Luiz Felipe Alencastro em A História da Vida Privada no Brasil 2: "Quase todo o Brasil cabe nessa foto". A diretora, por sua vez, não usa essa máxima como conceito, nem como princípio, mas se volta, especificamente, às implicações possíveis da foto na época em que foi tirada, e hoje. No início até parece um documentário sociológico que recorre a dados, fatos para compor um painel. Mas o uso da primeira pessoa desestabiliza o conforto (o distanciamento) do método ";sociológico" - a diretora foi criada por uma babá, e é, ela mesma, patroa de babás que cuidam de seus filhos. 

Por outro lado, um certo rigor analítico nas situações cotidianas, de contextos históricos e sociais, impede, também, que o filme enverede pelo documentário confessional e de olhar íntimo e individualizado. A diretora se implica. Ela não só entende, mas assume as contradições e coloca em crise essa relação dialética entre as partes, seja patroa-empregada, diretora-personagens, íntimo-profissional, imagem-fato. Talvez seja um filme um pouco desconfortável, tanto para as personagens quanto para a diretora, pois não há - nem nas imagens de intimidade - uma operação que apague as contradições latentes. Assim, a imagem-base sobre a qual o filme começa talvez não contenha todo o Brasil, como disse o historiador, mas é uma encruzilhada onde se encontram quase todos os nossos predicados civilizacionais.

Ninjas, de Dennison Ramalho (Brasil, 2010)

A primeira sequência de Ninjas foi seguramente o grande momento entre os filmes exibidos em Gramado: em um culto evangélico, um homem perturbado vê um Cristo velho, em nu frontal, com os olhos inteiramente negros, e enterrando a mão dentro da própria barriga. O que impressiona não é só a técnica e o profissionalismo (exaltado por uma porção de gente), mas como o diretor Dennison Ramalho consegue articular dois caminhos que hoje em dia no cinema raramente conseguem ser sem cair na mais absoluta puerilidade: o ponto de partida sobrenatural naturalmente iconoclasta - próximo a Mojica e ao melhor do cinema de horror dos anos 70, mas também não muito longe de Buñuel - e a ficção urbana contemporânea calcada em um fato "social", e ao mesmo tempo voltada ao "gênero". Ninjas usa isso como princípio de fabulação. É um pequeno filme que consegue constituir um imaginário fantástico voltado a coisas que nos são muito comuns, como a presença massiva das igrejas neopentecostais e os grupos de extermínio - duas forças aliadas ao medo e a certa violência (cada uma a sua maneira) para lidar com o inferno da realidade.

NinjasÉ esse inferno da realidade que o policial (Flávio Bauraqui) experimenta ao matar por acidente uma criança nas ruas de uma favela. Essa criança passa a assombrá-lo, como em A Encarnação do Demônio, filme de Mojica Marins do qual Ramalho é co-roteirista.  Assim como Mojica entendeu a cabeça do homem neurastênico, servil e supersticioso do interior nas duas primeiras partes de sua trilogia do Zé do Caixão, Dennison entra na mente do homem urbano, contemporâneo, recalcado, ansioso e (auto) vitimizado pelas circunstâncias. Tudo é infernal: o céu escuro da cidade de São Paulo, a violência psíquica de um culto evangélico, a miserabilidade cotidiana de um profissional - o policial - que inevitavelmente se alia ao horror no combate ao horror, e os fantasmas que o perturbam (o garoto morto) ou o consolam (o Cristo de olhos negros) são da mesma lavra perversa e demencial, que não são o oposto da realidade cruel do filme, mas de sua mesma tessitura. Este texto conceitua o filme (por isso o trai), pois ele deve mesmo é ser visto: tudo está lá, nas imagens. E elas são terríveis.

Haruo Ohara, de Rodrigo Grota (Brasil, 2010)

Rodrigo Grota faz um ensaio sobre Haruo Ohara, lavrador japonês e fotógrafo com um trabalho tão desconhecido quanto fascinante. Só que em vez de fazer um ensaio por meio de imagens de arquivo (que seria uma inclinação quase natural, dado que ele fala de um fotógrafo de outra época já falecido), Grota se aplica a recriar e tornar vivo o universo do Haruo Ohara, ou seja,  a gênese de seu trabalho, a matéria de seu olhar. Temos, portanto, encenações da situação cotidiana de sua família, seu trabalho e, claro, algum material de arquivo que, além de ser integrado ao filme, é reconstituído como cena.

BalzacAcontece que, adotando esse caminho, ele nos coloca em uma posição delicada: a de desconfiar de sua beleza. Existe uma beleza plástica avassaladora no filme, resultado de um trabalho talentoso e cheio de esmeros do fotógrafo Carlos Ebert. Se vê ai um preto e branco luminoso, assim como um trabalho de composição rigoroso (e caprichado) que parece sugerir um filme "postal" e postado. Duro. Corre o risco de ser meramente um discurso sobre a beleza. Quantos filmes ruins já não vimos que nos estimulam a falar com tranqüilidade de belezas isoladas:  "veja que fotografia bonita, veja que direção de arte bem cuidada e etc"?

Acontece que em Haruo Ohara essa desconfiança do olhar  - que pode ser tão inócua quanto uma mera impressão - se desfaz em uma segunda instância: o filme não é belo pelo que ele apresenta em termos plásticos, mas porque ele consegue, por seus meios (não só os plásticos), nos integrar àquelas imagens. Pode ser um expediente bastante questionado por quem não acredita que alguns filmes possam lançar suas bases primeiras por meio do lúdico e do fascínio de um universo que existe na conjugação entre a criação mimética do universo do fotógrafo e a contemplação ativa do diretor sobre suas imagens. O filme de Grota existe a partir da mesma dialética do fotógrafo japonês: entre a beleza do que existe (a natureza) e não precisa de sua intervenção, mas sim de sua compreensão e a força da sua construção na habilidade de sua intervenção. Por isso, os momentos mais belos do filme são os que o Ohara, antes de fazer suas fotos, estuda e se integra aos lugares e paisagens que irá registrar. Antes da forma (do conceito aplicado) vem a relação lúdica e sensorial.

Setembro de 2010

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