Homem-Aranha 3 (Spider Man 3),
de Sam Raimi (EUA, 2007)
por Paulo Santos Lima

O vermelho e o negro

Homem-Aranha 3 põe às claras um percurso iniciado em 2002, com o primeiro filme do herói. Um trajeto que é, curiosamente, um tanto avesso àquele percorrido por Sam Raimi nesse mesmo tempo e filmes: enquanto o cineasta construía seu primeiro Homem-Aranha um tanto desajeitado, evitando grandes faíscas no encaixe do filme no modelo de gênero industrial, para nas continuações recuperar certos elementos exploitation de sua fase cult, o personagem Aranha vem migrando de uma ousadia escancarada para um certo equilíbrio comportamental ajustado à vida comum. Na prática, houve um enquadramento do herói ao sistema, na mesma medida em que a caligrafia do diretor, na utilização que vem fazendo da imagem e do som, teve um uso mais aprimorado – quando não criativo. Diegese domesticando-se e estética ultrapassando-se.

Evidente, contudo, que esse reencontro com os procedimentos de seu cinema antepassado (que podemos bem chamar de “criatividade” na encenação) não coincide com uma perda de mira de Sam Raimi ao cinema de espetáculo, de alto borderô, com suas imagens de catarse ilustrando as passagens de ação. Pelo contrário até, seu Homem-Aranha 3 é, da série, o que mais põe à nossa vista os gastos, construindo situações que beiram a apoteose. O que muda, um tanto no segundo mas sobretudo neste 3, é que a dramaturgia mais romanesca, aquela apoiada na picuinhas íntimas dos personagens, permanece no filme, só que diluída diante do fluxo frenético de acontecimentos (ilustrando coisas na tela). Uma velocidade de eventos que nos são mostrados com a devida aceleração dos planos curtos.

No primeiro Homem-Aranha (2002), Raimi também optava pela pulsação cardíaca do cinema de ação, mas centrava a dramaturgia num Peter Parker bobalhão que ganhava poderes e, com eles, saía de sua exclusão paspalha para tornar-se visível ao mundo e à sua amada Mary Jane. Tínhamos um ritmo tanto pilhado para assuntos mais próximos de uma comédia adolescente dramática, daquelas do John Hughes roteirista dos anos 80. Não é à toa que o belo abalo sísmico deste primeiro filme fosse o trágico vilão Duende Verde, reproduzido na tela com uma inusitada fusão de cinema com teatro grego e japonês, mise-en-scéne do corpo e acting no rosto crispado de Willem Dafoe. Assim, o salto que Peter Parker dá para a vida, por meio do Homem-Aranha, é decerto progressista, mas as imagens que nos contam essa elevação são tímidas, rigorosas em seu uso mais comedido do 1.85:1, mas sem tanta assinatura autoral.

Em Homem-Aranha 2 (2004), as coisas mudam. Ali, ser Aranha passa a ser um problema para Peter Parker, porque ao renunciar à vida comum ele desagrada justamente àquela que seus dotes heróicos conquistaram, Mary Jane, que a cada sobrevôo seu por entre os arranha-céus recua no namoro com o moço. Perder MJ é perder o mundo para esse duo Peter Parker-Homem-Aranha, e daí que uma tremenda depressão o nocauteia, tirando-lhe seu poder aracnídeo. A negação à nerdice suburbana do primeiro filme é posta em discussão: se o norte não é combater o crime, mas sim assumir o papel que o modelo burguês idealizou, então freemos esse Homem-Aranha dentro do homem comum Peter Parker.

O fim do herói é a integração à sua comunidade ao passo que os vilões (dos três filmes) encontram a tragédia quando são desconectados do mundo dos comuns. É através do vilão que há a melhor seqüência dos três Aranhas: um raríssima (senão única) seqüência sem trilha incidental, que mostra os braços mecânicos do Dr. Octopus destripando os médicos num extracampo assustador; uma cena de terror como a do estupro cometido pelo arvoredo em A Morte do Demônio (1981). Os vôos do Aranha são mais orgânicos na montagem, com planos comunicando-se ao tornar seqüente os movimentos, com objetos e corpos mexendo-se num plano que precede um outro que mostra outros elementos, mas em semelhantes movimentos. HA2 foge do romance suburbano do primeiro para abraçar algo do terror mais sombrio com a comédia juvenil pastelão. E é justamente nessa troça que o filme faz em cima do Peter Parker deprimidinho que está certo encontro do filme com a irreverência antepassada de Raimi, e, mais que isso, com um desprendimento de abordagem típico de algum cinema dos anos 60 e 70 — e não à toa o personagem goza sua liberdade de homem comum ao som de Raindrops Keep Fallin’ On My Head, de Butch Cassidy (1969).

Pois Homem-Aranha 3, filme de recuo, trava diálogo ainda mais profundo com os anos 70. E, enfaticamente, com os 50. Após o alvorecer do herói no Homem-Aranha 1 e a crise sobre esse “ser Homem-Aranha” na continuação, neste 3, não haverá mais dúvida: o Homem-Aranha tem de estar atrás de ser Peter Parker, que por sua vez tem de estar sempre a postos para sua amada Mary Jane. MJ não é apenas uma reserva dramatúrgica, chave para as cenas românticas, mas a personificação do ideal burguês, da estabilidade, da vida comum, do ser apenas um “nerd do Queens” (como diz o próprio Parker). Não estamos, como no segundo filme, falando de crise do Homem-Aranha, mas sim de sua constatação, inclusive legitimação, que é inclusive o que potencializa a crise do casal Parker-Jane. É, inclusive, importante salientar que Homem-Aranha e Peter Parker são uma coisa só – algo aliás muito bem resolvido no campo-contracampo que mostra o Parker, à paisana, correspondendo ao frenesi popular ao Aranha, quando este é homenageado num mega-evento.

Ambos são algo único, e daí a pergunta: se Aranha e Parker estão entranhados num mesmo corpo, como grifar o reverso deste verdadeiro estado de espírito chamado Homem-Aranha? Primeiramente, subtraindo sua importância, pois este terceiro episódio é o que apresenta o pior dos mundos: concorrência selvagem no mercado de trabalho, três vilões terríveis, inclusive Harry, filho do Duende Verde, que dissimula e se torna mais letal, uma geleca alienígena que será das piores coisas da série, a avalanche de catástrofes, como um guindaste descontrolado. Tudo isso, ou quase tudo isso, o Aranha tira de letra. Mas e a deliciosa Gwen, motivo de ira ciumenta de MJ contra Peter Parker? A irreverência do Aranha pode contra isso? O filme deixa claro, agora mais que nunca, que não haverá teia capaz de frear os ânimos aquecidos de MJ. A esgrima verbal, o acting dos atores, a dramaturgia folhetinesca, assumem o controle aqui, e só com essas ferramentas esse problema pode ser sanado. Assim, o Peter Aranha Parker lutará, mais que contra os vilões, contra sua solteirice e conseqüente exclusão do modelo convencional.

E a prescrição de Homem-Aranha somente em doses homeopáticas ganha atestado científico quando o tal alien negro se apodera de Peter Parker. De natureza muito semelhante a algo encontrado nos anos 70, como diz um professor amigo de Parker, essa coisa dará poderes ilimitados ao Aranha e, por conseguinte, a Parker. Surge um rapaz na bossa do Travolta de Os Embalos de Sábado à Noite, fuzilando com os olhos o mulherio pululante, tomando uns drinques e não engolindo desaforo algum. Até uns “chega disso” na fresca (agora ex-namorada) Mary Jane o novo Peter Parker tratará de dar, sem derramar as lágrimas patéticas que despejara seqüências atrás, quando a moça deu-lhe um chega pra lá.

Esse Homem-Aranha mais anárquico e irreverente funciona como uma daquelas advertências atrás dos maços de cigarro: o uso excessivo do Homem-Aranha pode causar riscos à vida classe média burguesa de Peter Parker. Adotais, assim, um uso homeopático do Aranha em sua vida, diz o filme a Parker. Haverá a overdose da droga quando o fotógrafo rival de Parker é acometido por esse alien, tornado-se Venom. O terror instala-se implacavelmente no filme. Mas esse lado negro do Aranha rende esses momentos gingados, de humor (ora rosado, ora negro, bem ao estilo do cinema de Raimi), quando Parker abre-se a uma ambigüidade sem precedentes no trio de longas. Mas Homem-Aranha 3 tem como norte Mary Jane, imagem tão sem nuance quanto cândida, e o filme assume em elementos visuais e dramatúrgicos um gabarito anos 50, inclusive com a mocinha incorporando o glamour fifties, seja no teatro lamê à la Broadway, seja num clube encarnando as divas cantoras e seu jazz comportado.

Mas essa repressão à ousadia e a ultrapassar a pequenez da existência, ação anti-progressista, por assim dizer, é uma mensagem declarada “no” filme. Porque a mensagem “do” filme, ou seja, a das suas imagens, traz o traço mais ousado do Raimi cineasta B, com vários elementos de choque em meio à pasmaceira temática de um repertório de cinema industrial. Seja o belo momento no qual o ladrão Flint, após tornar-se Homem-Areia, tenta em vão resgatar a medalhinha de sua filha para, a seguir, graças a esforço hercúleo, remoldar suas novas mãos à função anterior e capturar a prenda, seja como Raimi resolve os blablablás da tia de Parker, May, deixando sua imagem ao fundo, em desfoco total, enquanto mantém sua voz soberana na cena, este Homem-Aranha 3 é decerto o melhor da trinca. Mais violento, também, e cuja alta velocidade da montagem se faz também perfurante, orquestrando planos curtíssimos mas que se comunicam, montando um mosaico de situações exasperantes enquanto o Aranha se arrebenta contra os vilões pelos ares. Uma estética que respeita os discursos, mas que prevalece, não fazendo distinção de geometria entre a anestesia anos 50 da euforia anos 70.

Nessa fricção entre um discurso mais verbal que clama pelo dourado e outro, que usa toda a gama de efeitos visuais para reencontrar traços perdidos do cinema de invenção das produções B, Sam Raimi sai vencedor. Mas não como Tim Burton quando dirigiu os dois (e melhores) Batman. Traduzindo, equipararemos seus heróis, aqui se fazendo de representantes de seus cineastas: se Batman é um fim para Bruce Wayne existir em outra esfera mental, rompido com o mundo, Peter Parker tem em seu Homem-Aranha um meio de inserção neste mesmo mundo. Ambos com ótimo cinema, enquanto Burton prefere a meia-luz à cegueira dos holofotes, Raimi já confirmou seu nome para o quarto episódio de Homem-Aranha.

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