Hancock (idem), de Peter Berg (EUA, 2008)
por Eduardo Valente

Um outro herói

Mais um filme de super-herói. Mais um? Não, porque, ao contrário de 99% da produção recente de filmes de heróis, Hancock não se baseia em nenhum material pré-escrito, e que, portanto, crie para ele uma base pré-assegurada de fãs ou de mitologia. No entanto, é claro que, em se tratando de uma super-produção de verão hollywoodiana, há uma “garantia de atração” do público, e ela se chama Will Smith. Pode-se afirmar que, para além das circunstâncias factuais da produção do filme, Hancock não existiria sem Smith. Em texto sobre À Procura da Felicidade, Fernando Veríssimo já discorreu nestas páginas sobre o carisma do ator, algo sem paralelo no cinema hollywoodiano atual. Fato é que, seja na utilização da persona singularmente cinematográfica do ator ou no simples movimento de propor um herói original para as telas, o filme de Peter Berg aposta na capacidade do cinema de criar a sua própria mitologia – e num momento como o atual em que se afirma uma crise do cinema, isso não é pouca coisa e beira a ousadia.

No que concerne sua estrutura, Hancock é dividido em duas metades bem distintas, sendo que as duas possuem elementos que o diferenciam bastante da recente onda hiper-explorada dos filmes baseados em heróis de histórias em quadrinho. A primeira parte do filme é aquela que o trailer e todo material de divulgação deixava antever: temos ali um anti-herói, Hancock, que vive às turras com a sociedade de Los Angeles, onde vive/atua, porque suas incursões para “salvar o dia” são sempre absolutamente desastradas, caracterizadas antes de tudo por um completo desapego aos detalhes práticos que suas ações acarretam. Nesta primeira parte, está em cena o Will Smith comediante, e o filme já se diferencia dos filmes de heróis justamente pela predominância do registro cômico. Ao mesmo tempo que se brinca com a noção mesma de heroísmo, faz-se um curioso movimento de colocar o personagem do super-herói no universo da nossa realidade: cada ação espetacular possui um efeito sobre o cotidiano do espaço geográfico-social no seu entorno, com direito a cifras de prejuízos causados à cidade e lixo/reparos precisando ser cuidados. É um primeiro deslocamento de atenção pouco comum ao gênero do herói.

E, no entanto, é preciso se dizer que este deslocamento não se dá às custas do maravilhamento em si, muito pelo contrário: as sequências encenadas por Berg nesta primeira parte, seja a perseguição ao carro com os marginais orientais, seja o “salvamento” do personagem de Jason Bateman, são dos mais fascinantes usos dos efeitos de computação gráfica do cinema de ação recente (cujo desenvolvimento, afinal, foi o elemento que permitiu o atual boom dos filmes de heróis). Sim, porque ao desenhar suas sequências na contramão do “vale tudo” bastante estéril dos efeitos digitais, Berg consegue ao mesmo tempo dar a estas uma urgência até então desconhecida (essa onde o arrancar de uma placa de sinalização de trânsito resulta num desastre automobilístico sentido com a fisicalidade que este possui) e continuar apostando na exacerbação dos sentidos frente à maravilha encenada (a parada do trem ou a freada do carro pelos pés). Então, o que Berg consegue fazer aqui não é pouco: ele restitui às cenas de ação hipercomputadorizadas um sentido anterior de maravilhamento ao somar à suspensão das regras da realidade uma presença física marcante desta. Talvez a cena mais facilmente “representativa” desta primeira parte seja aquela em que a cabeça de um personagem atravessa uma região, digamos, delicada do corpo de outro: impossibilidade+efeito físico, a partir da chave do humor.

A partir do encontro com o personagem de Bateman começa o movimento seguinte desta primeira parte, que também estava mais do que previsto em todo o material de divulgação: o “nascimento do herói” que tanto caracteriza todos os filmes do gênero, obcecados pela noção de origem. Só que, aqui, a origem não se localiza nos poderes em si (assumidos desde sempre como instância pré-existente, independente de explicações) e sim na idéia de construir-se como herói. É, a princípio, a parte mais “domesticada” do filme, mas nem tanto quanto se poderia esperar: a começar pelo fato de que, por um lado, o personagem de Bateman (o especialista em relações-públicas com inclinações utópicas) é tão foco de ironias quanto o próprio Hancock, ou seja, em nenhum momento o filme toma a posição de considerar o seu movimento de “heroicização” realmente a sério (e tudo que envolve o uniforme nos lembrará disso). E depois porque, se identificação com o olhar do espectador há, ele se dá com o personagem do filho de Bateman, que desde sempre se encanta por Hancock por aquilo que ele é: um fenômeno maravilhoso, mesmo que não-educado. A simples existência deste olhar no filme, que retoma o encanto inconseqüente, já coloca todo o processo de domesticação num outro patamar, no mínimo profundamente irônico (e o uso da expressão “good job” nesta parte do filme é brilhante neste sentido).

Só que, quando atingimos então este momento de virada do personagem, que todo o material de divulgação do filme fazia crer ser o “fim em si” do projeto, mal começamos a entrar na segunda metade do filme. Esta será marcada pela vinda a primeiro plano da personagem de Charlize Theron a partir de uma cena verdadeiramente surpreendente, não só pelo seu desfecho espetacular, mas principalmente pela pulsão sexual que o antecede e que Berg constrói muito bem desde o começo do filme como uma sensação subterrânea um tanto incômoda, e finalmente inesperada quando literalmente “explode”. É então que Hancock, o filme e o personagem, revivem. De irônico olhar sobre o gênero do herói e sua domesticação, de repente mergulhamos numa mistura de drama pessoal de relacionamentos, profundamente pungente, e construção de mitologia.

O que este movimento tem de mais deliciosamente inesperado, é que ele faz o que era um filme de herói dar o seu salto do registro banal/cômico para o épico pela chave não dos super-poderes ou da “missão do herói”, que ele já havia estabelecido sem qualquer cerimônia no começo, mas sim a partir da idéia do relacionamento de um casal que não pode se ver como tal ao mesmo tempo em que não pode fugir desta condição. E aí a cena do confronto nas ruas da cidade entre Hancock e Mary altera completamente toda a lógica de uma tal cena nos filmes de herói, porque não há de fato algo a ganhar, um mal a evitar, mas um confronto interior externalizado, uma angústia que explode. Daí por diante, o filme assume esta chave completamente distinta, que chega ao seu clímax na cena do hospital, toda ela muito mais baseada na construção interior do que se passa em cena do que na idéia de uma ameaça externa ao(s) herói(s). Esta sequência, seguida da fuga de Hancock para a distância, nos dão um dos mais fortes desfechos de filme de herói de todos os tempos, principalmente pela destruição emocional que acarretam.

Ah, dirá o leitor, mas o filme não termina ali. Verdade, há um epílogo efetivamente lamentável como discurso e como encenação, que inclui o uso da Lua como outdoor, que busca um apaziguamento geral do mal estar sentido imediatamente antes e ao longo de todo o filme (afinal, não custa lembrar, a atração entre Hancock e Mary, desejada desde o primeiro momento pelo filme e por todos nós, implicava no fim de um casamento feliz e na desestruturação da família como tal). No entanto, fica mais do que claro até pela encenação preguiçosa (que contraria tudo que vimos até então) que este desfecho é, antes de tudo, uma imposição do mercado mesmo ao produto que assistimos (afinal, se bem sucedido, Hancock precisaria deixar minimamente aberta a porta a uma sequência, é óbvio), e isso está longe de ser uma novidade em termos hollywoodianos, sendo algo inerente mesmo ao sistema que sequer permite que um filme assim possa ser feito. No entanto, quando lembramos de alguns filmes, recentes (o próprio À Procura da Felicidade ou Click, com Adam Sandler) ou nem um pouco (Fritz Lang já precisou lidar com isso, por exemplo, em A Gardênia Azul, de 1953, cujo desfecho praticamente renegava o filme todo para permitir algum tipo de feel good), sabemos que um filme pode ser bem mais do que apenas o seu desfecho, especialmente neste sistema que sobrepõe vários outros quesitos pelas necessidades comerciais. E aí, o fato é que, com ou sem o seu desfecho, o que fica de Hancock, como de qualquer um destes filmes, é muito mais a jornada bastante dura que nos leva até ele.

Julho de 2008

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