edição especial curtas brasileiros
2009 Entre-estar por
Fábio Andrade
Handebol,
de Anita Rocha da Silveira (Rio de Janeiro, 2010)
O
universo adolescente parece ter encontrado na produção de curta metragem seu maior
refúgio representativo no cinema brasileiro. Filmes como N. 27, de Marcelo
Lordelo; Não Me Deixe Em Casa, de Daniel Aragão; Corpo no Céu, de
Luísa Marques; Eu e Crocodilos, de Marcela Arantes; e Laurita, de
Roney Freitas, debruçam-se sobre essa suposta entre-fase que liga a infância à
vida adulta, partindo de situações ou sentimentos que são próprios a ela, e que
os filmes restauram pela encenação de certos eventos (em geral, traumáticos).
Mas Handebol, de Anita Rocha da Silveira, vai além. Vai além, pois interessa-lhe
menos encenar certos rituais da adolescência (algo que o filme também faz com
preciosa naturalidade, mas que não lhe é central), e mais incorporar um sentimento
adolescente à construção do filme. A adolescência, portanto,
deixa de ser pensada como universo demográfico e passa a ser encarada como manancial
de potência estética para a criação. Handebol percebe na idade a zona mista
entre uma primeira tábula rasa social (pensemos aqui na infância de Tauri,
de Marcio Miranda Perez), e a plena convencionalidade da vida adulta. É justamente
aí que está seu maior interesse temático, pois essa oscilação entre estados contraditórios
é também característica da própria criação artística. A adolescência interessa,
portanto, por ser algo em constante transformação, flutuando entre o conhecido
e o desconhecido, o diegético e o não-diegético, a infância (com toda a carga
metafórica de curiosidade, descobrimento e sensualidade que o termo carrega) e
a vida adulta. Handebol
é um filme notável por perceber exatamente qual aspecto da natureza da questão
ele quer abordar, e usá-lo como motivação artística. Os sentimentos não são somente
encenados; eles ganham traduções visuais. A sensação de não-pertencimento é incorporada
pela estranha intimidade dos quartos montados em lojas de departamento; a latência
de se estar em um constante devir vem por uma longa sequência em fusão, onde as
personagens parecem movidas pela vontade de tocar seus outros eu’s (do passado
e do futuro); as canções dos Beach Boys, nostálgicas de uma época que não é a
das personagens nem a da diretora, trazem um acento imemorial que reforça que
interessam menos as situações (essas sim sujeitas às transformações do tempo),
e mais a sensação que as atravessa.
Visualmente,
Anita alcança essa sensação pela constante promoção de ambiguidades na encenação.
Ao mesmo tempo em que os planos em slow motion evocam as cenas dos skatistas-anjos
em super-8 de Paranoid Park, de Gus Van Sant, o recurso aqui ressalta um
peso carnal idealizado que está igualmente próximo da sequência do vestiário feminino
em Carrie, de Brian de Palma – combinação que faz com que o filme mais
próximo de Handebol seja mesmo Bom Trabalho, de Claire Denis. A
épica briga final carrega, aqui, tanto de horror quanto de gozo, de liberação,
de alívio cômico, que vêm pela naturalidade com que os corpos se entregam a uma
coreografia de choque. O erotismo está sempre próximo da
violência, mas o mais interessante é que essa percepção não é necessariamente
apocalíptica (novamente, Tauri) ou traumática (Não Me Deixe Em Casa).
Há, na juventude, um prazer enorme em se colocar em movimento, mesmo quando se
tem a consciência que esse movimento é igualmente produtivo e destrutivo (o jogo
de handebol; o “vídeo incrível” do ciclista tirado do People & Arts). Esse
prazer vem justamente da percepção, construída e ratificada pela vivência social,
de que o jovem está ainda em processo de definição (não estaríamos sempre?), vivendo
o momento em que as expectativas do mundo ainda não condicionaram as personagens
a se comportarem de uma determinada maneira, mas lhes dá lucidez suficiente para
perceberem que essas convenções existem, e esperam por elas na próxima esquina.
A juventude parece guardar a última possibilidade de um suicídio justo, e isso,
em si, é igualmente angustiante e libertador.
Anita
filma justamente esse limbo (ou Éden) temporário, onde há mais pulsões do que
chances ou capacidade de extravasamento. Nesse mundo há personagens que, de tão
cheias de vida, vertem sangue pelo nariz; mas, para capturar essa potência, é
preciso filmá-las como mortas, congeladas neste flerte com o outro (que pode ser
tanto um outro sexual, quanto a própria vida por vir). A beleza está justamente
nessa propensão ilimitada ao risco, onde morrer e matar em uma partida de handebol
(e não por ela) é de uma nobreza inquestionável. Pois, depois de morta,
basta um leve tapa no rosto para fazer voltar a vida, tomada pela excitação das
infinitas novas maneiras que se poderá morrer novamente. Janeiro
de 2010
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