in loco - cobertura do É Tudo Verdade

Handerson e as Horas, de Kiko Goifman (Brasil, 2007)
por Cléber Eduardo

A armadilha da “idéia”: pensamento-esboço sobre o cinema de Kiko Goifman

Apoiar-se em um pretexto como núcleo e em uma busca de uma narrativa, sem se ter controle de seus rumos, não pode ser entendido como falta de objetivos ou de estratégias, de forma alguma. O pretexto pode ser a busca da mãe natural durante um número especificado de dias (ponto de partida de 33, que encara esse  desafio como uma gincana autobiográfica). Pode ainda ser a procura por um “espírito de um espaço social” (a Baixada Fluminense em Atos dos Homens), no qual o espírito investigativo retorna, mas, agora, de uma maneira mais rarefeita e menos ciente das metas. E pode também ser a duração de uma longa viagem de ônibus por São Paulo, durante a qual não importam quase nada os acontecimentos de percurso (duas horas e meia resumidas em aproximadamente 50 minutos), mas, sim, o próprio tempo consumido entre o ponto inicial e o ponto de chegada. Esse é o pretexto de Handerson e as Horas, documentário realizado para a grade do DocTV, que provoca alguns pontos de interrogação.

Imagens de ônibus queimados e letreiros contextualizantes nos introduzem em um mundo de violência, cujo alvo é o mais utilizado transporte coletivo. Números sem rigor metodológico, associando de maneira sofista as horas passadas no trânsito com os anos de vida das pessoas, abrem outra porta de entrada: a constatação, pelos cálculos, de que o ser urbano vive em deslocamento, embora preso no trânsito dentro de carros e ônibus. Essas informações são impressas na tela enquanto vemos uma porta fechada e ouvimos o som da higiene pessoal de um rapaz da periferia paulistana. Cadê a idéia matriz?

Está no tempo. Porque um extenso plano sequência vai acompanhar esse rapaz quando ele sai do banheiro pelas ruas de seu bairro. Um corte é feito e, no lugar de uma outra imagem, vemos outro letreiro (“Corte de 1 minuto”). Todos os demais cortes serão seguidos da informação sobre quantos segundos e minutos se cortou. A narrativa é linear, cronológica, com essas elipses. Vemos o ponto de ônibus lotado, a entrada no veículo, uma festa de aniversário lá dentro (com bolo, cerveja) – sabe-se lá se armada (não importa). Tempo como movimento. Ônibus como movimento. As pessoas imóveis, apertadas; com algumas delas, rapazes quase todos, esboçando uma comunidade. Uma comunidade efêmera, em trânsito, que se auto-celebra. Não estamos diante de uma denúncia contra as condições do transporte coletivo, tampouco veremos sinais daquele letreiro inicial sobre queima de ônibus. Só importa o tempo da viagem, a arruaça sonora, a festa, o humor, os corpos tocando-se uns nos outros, os olhares cansados de quem se mantém em silêncio e fora do grupo, a jornada nada agradável para quem não está comemorando. Narrativa fenomenológica. Não se fala nada de relevante, os depoimentos sem imagens concentram-se no anedotário dessas viagens, pouco ou nada sabemos daquelas pessoas para além de suas fragmentadas experiências de passageiros.

E como isso nos é apresentado? Aqui, a porca torce o rabo. Se é claro o compromisso com o tempo e com a repetição, isso não garante em si mesmo a construção de um material com força, seja porque a matéria-prima não rende, seja porque o método emite sinais de motor falhando. O misto de observacional-interativo, as retiradas do som em momentos de maior observação, a captura de detalhes de corpos, a câmera que busca, mas não encontra, porque está na mesma situação dos passageiros ( sem espaço e dentro de um espaço em movimento descontínuo), é pautado pela  permissividade. Não se percebe a razão de se registrar algumas situações, menos ainda a de tê-las mantidas na filmagem, mas tudo está legitimado pelo conceito geral, de se comportar como um olhar/experiência subjetiva de quem está naquela experiência, como se fosse mais um ali, com direito a passar pela catraca e aceitar um gole de cerveja.

No entanto, esse pretexto, ou idéia-matriz, morre em si mesmo. Porque nem toda experiência direta é em si mesmo condensável em uma narrativa audiovisual forte. Para isso, existem as estratégias, como sabe Goifman. As dele, quase sempre, são de riscos. Dependem do acaso, das pessoas, das situações. Nem sempre elas têm potencial para render narrativas. Esse vem sendo até o momento a energia-núcleo e o limite do cinema de Goifman. Em algumas circunstâncias, dá certo. Em outras, é uma armadilha. É a aventura do documentário-idéia, que, em última instância, deixa o diretor ao sabor de um acaso provocado, mais tarde organizado, mas nunca controlado. O descontrole procurado aqui não entra nos eixos, como em 33 e Atos dos Homens. Talvez seja a intenção. Mas não se pode dizer que o efeito na tela a justifique.

Os documentários de Kiko Goifman são, em primeiro lugar, sustentados por pretextos narrativos. Um pretexto não é, exatamente, um tema ou um universo, mas uma idéia. Essa idéia não é uma visão de mundo a ser ilustrada por sons e imagens, assim como não é uma associação de pensamentos a ser demonstrada na linguagem. Não está pronta. Na verdade, uma idéia, ou um pretexto, é uma provocação. Provocar ações para se filmar.

Jean Rouch trabalhava com essa noção: estabelecia um contexto de realização a si próprio e a seus “personagens” como norte para a captura de matéria prima da vida (vida para a câmera) e para a sua posterior organização em forma de narrativa. Não que, com isso, não expusesse, como resultado, algo da sociedade. Mas esses traços de uma estrutura de relações da comunidade humana eram encontrados por meio de estratégias narrativas e dramáticas. Eduardo Coutinho também tem se pautado por esse caminho, mas com a entrevista e a conversa no lugar da assumida auto-encenação (mais escancarada em Rouch).

Isso não significa uma negação da encenação. Ela só não é tratada como método, mas como efeito do método. Depois de Cabra Marcado para Morrer e Teodorico – O Imperador do Sertão (ambos nascidos como resultados de “acidentes”de percurso), Coutinho escancarou a “impressão de processo” em O Fim e o Princípio, agora com os acidentes organizados, procurados como “idéia” narrativa,  empregada como fagulha da formatação e abandonada quando o diretor encontra o assunto na filmagem, encerrando a aventura da procura de um filme para se concentrar na experiência de ouvir pensamentos e experiências de pessoas bem recortadas enquanto matéria prima da vida.

Goifman é um diretor de idéia, talvez entre Rouch e Coutinho. Trabalha com a auto-encenação (às vezes, dele mesmo, como narrador) e com idéias-matrizes. Tenta jamais abandoná-las totalmente, mesmo quando encontra um assunto. Uma idéia como uma estratégia, como alavanca narrativa, como norte e como descontrole. Tem-se usado e abusado do termo-conceito “dispositivo” quando se identifica uma idéia-núcleo de “impressão de processo”. O “cinema-dispositivo” escancara seu método, seu processo, faz da idéia uma co-protagonista – não apenas um cerébro “por trás”. Em muitos casos, é exibicionismo de “sacada”.

Sejamos rigorosos: Goifman carrega um tanto de exibicionismo de sacada, operando em algum nível de metalinguagem (na imagem, nas intervenções diegéticas com a voz e nas narrações), de modo a assumir um olhar e uma presença por trás da câmera, um estar em cena com seus objetos. Os documentários de Kiko Goifman são sobre Kiko Goifman fazendo documentários (como os de Coutinho). Suas imagens são, em geral, bastante estilizadas, no enquadramento ou na textura. Suas abordagens estão sempre atrás de um percurso criativo, com sede de originalidade. Há a “sacada” da idéia matriz, mas, a partir desse pretexto, assume-se uma construção. Para suas narrativas, importa menos o real, importa mais a linguagem. Não a “linguagem do real”, como se lê em um texto de Kieslowski no catálogo do É Tudo Verdade, mas a linguagem que emprega o real.

Há nos video-filmes de Goifman, ou pelo menos em seus mais expressivos trabalhos, o desafio de se buscar uma “forma”, mais que assuntos, sem com isso ignorar as experiências registradas. Elas não são, porém, o mais importante. Importa mesmo é encontrar uma maneira, na filmagem e na montagem, de mostrá-las como parte de contextos, não de modo isolado ou como algo fantástico. Goifman trabalha, sim, com sintomas sociais, mas, eventualmente seguindo ou rompendo com sua formação na antropologia, nem sempre quer a clareza, por assim dizer, de um poder revelatório do sintoma.


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