Hannibal - A Origem do Mal (Hannibal Rising),
de Peter Webber (EUA/Inglaterra/França, 2007)
por Paulo Santos Lima

A carcaça oca de Lecter

Desde sua primeira aparição nas telas, no soberbo Manhunter (1986), de Michael Mann, Hannibal Lecter vem servindo como um mestre de cerimônias aos dilemas psíquico-existenciais dos personagens. Mais interessante, contudo, porque funciona como um agente revelador e instigador dessas crises. Um verdadeiro maestro que sacode a batuta para fazer a orquestra mergulhar em seu transe sonoro – e, sobretudo no filme de Mann e satisfatoriamente em O Silêncio dos Inocentes, de Jonathan Demme, a imagem compõe esse transe.

Pois neste Hannibal – A Origem do Mal, o galante Hannibal “Canibal” Lecter perde o comando e responde a algo que já está determinado antes e sobreposto a ele, com a meta de elucidar suas psicoses, que antes eram apenas existências na tela, complexidades que compunham um todo que reunia tanto o cult artist Hannibal Lecter quanto o monstro “Canibal” Lecter – dualidade esta bem presente nas suas predileções gastronômicas, nas quais o seu canibalismo seja uma ótima nouvelle cuisine (algo, aliás, bem destrinchado em Hannibal, um raríssimo bom trabalho de Ridley Scott). O filme de Peter Webber retorna à infância de Hannibal, no leste europeu, durante a Segunda Guerra Mundial: uma situação medonha, com alemães barbarizando, bombas estourando implacavelmente e mercenários estripando tanto os bolsos quanto as carnes humanas. É nesse ambiente que um Hannibal infante presenciará coisas hediondas, como pais metralhados e sua irmãzinha sendo assada como um bom leitãozinho.

Embalado em imagens grandiosas, fotografia padrão monocromático-azulada-documental dos filmes de guerra, câmera esperta nos passeios pelo cenário e montagem dinâmica, esse início deixa claro que este episódio da vida do nobre canibal está submetido a uma ordem na qual ele terá de se enquadrar. Assim, horas tantas, ele (Gaspard Ulliel), jovem e estudante de Medicina em Paris, acariciado e protegido por sua tia japonesa (Gong Li), terá como missão fazer uma limpeza cortante. Com apetite aberto a novas degustações, ele matará tanto o açougueiro que bolina sua deliciosa titia quanto a horda que barbarizou-o na sua infância.

O filme, aqui, parece devorar a carne de seu personagem, porque o apresenta como uma aberração, gastando tempo em mostrar suas grotesqueries, ao mesmo tempo em que legitima sua vingança contra os assassinos de sua irmã – tudo isso sob viés sensacionalista. E bem diferente, por exemplo, dos inúmeros policiais que cumprem a pauta do roteiro, mas caçam seus facínoras sob aparente autonomia — pois o filme, antes de tudo, está junto a ele, endossa suas ações, mesmo quando extremas.

Hannibal – O Início do Mal, também pelo título, rouba o drama de Hannibal, que antes um Drácula dos novos tempos, um romântico que, no ato de sedução impecável, detona um reverso assustador. As sobrecamadas não paravam nisso: Hannibal Lecter, sobretudo na composição de Anthony Hopkins, é um corpo em cena, no sentido físico do termo, cuja expressividade, rosto carregando sentidos, retoma um cinema anterior à carnalidade de Fuller, Kazan ou Ray. Na soma, é como um herdeiro de Brando e Clift. Ou algo além, metalingüístico em sua orquestração da representação cênica e do argumento. Neste, até assistível, mas tanto banal filme de vingança, Hannibal Lecter é só uma imagem vazia, oca, uma casca que pode abrigar qualquer coisa – tanto esse vulto anêmico do sofisticado canibal Lecter como o Charles Bronson justiceiro de Desejo de Matar.

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta