Happy Feet: O Pinguim (Happy Feet),
de George Miller (EUA, 2006)
por Leonardo Mecchi

A Bíblia animada

Quando de sua estréia nos Estados Unidos, o documentário francês A Marcha dos Pingüins causou uma grande comoção na direita religiosa norte-americana, que viu no filme (que humanizava os pingüins-imperadores) uma defesa do criacionismo, em oposição à teoria evolutiva de Darwin, e um elogio aos princípios familiares monogâmicos e heterossexuais. Se no caso do filme de Luc Jacquet tal leitura só foi possível graças à expansão, durante a era Bush, de um certo neo-fanatismo religioso de direita, Happy Feet: O Pingüim (que em muitos momentos poderia passar por um remake animado de A Marcha dos Pingüins) não se esforça em esconder a inspiração claramente religiosa por trás da história de Mano, o pequeno pingüim sapateador.

Temos no início um cenário quase apocalíptico: a escassez de comida ameaça a vida de todo um povo, falsos ídolos são idolatrados (Amoroso e os seixos que lhe oferecem seus seguidores) e pseudo-profetas responsabilizam a falta de fé das novas gerações pelo castigo divino que os acomete (Noé, referência explícita ao personagem bíblico homônimo, vinculado ao maior dos castigos divinos – o dilúvio). É nesse cenário que surge Mano, recriação do arquétipo do messias, que coloca em risco sua própria vida para salvar um povo que sequer acredita nele, mantendo-se fiel às suas crenças apesar de todas as provações que isso lhe acarreta.

Ao propor uma nova forma de se relacionar com o outro (através da dança, e não do canto), pregando, conseqüentemente, a aceitação daquele que é diferente, Mano se posiciona frontalmente contra os anciões. Não bastasse propor algo que vai contra tudo o que aquele povo acreditava até então, o pequeno pingüim ainda afirma a existência de um mundo para além daquele, onde seres mais poderosos do que eles podem definir a vida ou a morte de seu povo. Taxado de louco e desordeiro, Mano é renegado por seu próprio povo, que prefere bani-lo para uma possível morte a tê-lo entre eles.

Em seu calvário de tribulações para salvar aqueles que o rejeitaram, Mano acaba se aliando a outros personagens que também encontram ecos nas Escrituras. É o caso, por exemplo, dos pequenos pingüins latinos, que ao deixarem tudo para trás para segui-lo, defendendo-o das acusações e escárnios (mesmo que por vezes tenham eles mesmos dúvidas em relação à missão de seu líder), remetem diretamente aos apóstolos bíblicos, com sua fé ao mesmo tempo cega e frágil. O mesmo pode ser dito de Amoroso – “interpretado” na versão brasileira por Sidney Magal, numa feliz escolha que só poderia ser superada por um Tim Maia em sua fase racional –, uma mistura de São Paulo (ao se converter do paganismo ao ser tocado pela verdade) e dos evangelistas (ao assumir para si a responsabilidade de deixar registrado para a posteridade a história do messias).

Até mesmo a morte e ressurreição de Cristo são recriadas no filme, com Mano ascendendo ao céu (na cena em que caminha em direção à luz e é recebido no “paraíso”) apenas para depois ressuscitar para os seus trazendo a boa nova – a aliança com os “seres místicos” que promete o fim dos sofrimentos e o retorno ao paraíso perdido –, com direito à multiplicação dos peixes e tudo o mais. Tal apelo religioso talvez possa ajudar a explicar o sucesso de Happy Feet nos EUA (o filme arrecadou mais de US$ 41 milhões no primeiro final de semana, batendo o novo 007 em sua estréia), e parece pavimentar o caminho para uma onda religiosa que a direita americana promete impor a Hollywood, onde o sucesso de Jesus Camp (documentário sobre crianças que freqüentam acampamentos religiosos e que tem causado alvoroço por onde passa) e a criação da Fox Faith (subsidiária da Fox dedicada exclusivamente a difundir filmes “familiares e cristãos”) parecem ser apenas os exemplos mais evidentes.


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