À Procura da Felicidade (The Pursuit of Happyness),
de Gabrielle Muccino (EUA, 2006)
por Fernando Veríssimo

Homem comum, enfim.

Da cepa de um Henry Fonda (em Ford) ou um James Stewart (em Mann, Hitchcock e, sobretudo, Capra – comparações abundantes aí afora, e nada gratuitas), não há outro que vista a carapuça do bom moço no cinema americano atual como Will Smith. Talvez Tom Hanks, mas este corre riscos desnecessários com uma certa freqüência (vide colaborações com irmãos Coen e participações em maus projetos como À espera de um milagre ou O código Da Vinci). O carisma desse mr. Smith aqui é produto de ponta em Hollywood, tão valioso quanto os últimos avanços tecnológicos de Pixar, James Cameron e quetais. Smith é o efeito especial, mesmo quando ele divide a cena com monstros, robôs, ou o que vier. Quando exibe um lado seu mais violento ou cruel, como nos poucos momentos em que sua personagem deixa o desespero tomar conta (abandonando o brinquedo da criança no caminho ou partindo o coração de um pobre débil mental), toda a platéia compreende seus gestos – a admiração por ele aumenta, porque há ali uma manifestação do humano. Eis aí uma qualidade rara entre as vedetes de hoje – ou alguém poderia imaginar um Tom Cruise fazendo o mesmo sem provocar um riso sarcástico no espectador?

Dono de um carisma que, jogando à frente ou atrás das telas, lhe impulsionou ao status de mega-estrela internacional, Smith apresenta sua cartada mais ambiciosa em À procura da felicidade, drama que logra convencer platéias de parte a parte a acreditar que o sonho americano existe – e, mais que isso, que ele é real. Projeto obviamente cultivado com carinho, desenvolvido com zelo e precisão cirúrgica para atender às necessidades de sua vedete, a fita parte de uma premissa tão comum ao repertório clássico que chega a parecer singela, até mesmo ingênua: a história real de Chris Gardner, homem de negócios frustrado que tem de enfrentar as conseqüências comuns ao fracasso e à bancarrota (abandono da esposa, auto-estima em baixa, necessidades financeiras, etc.), para, num desfile de força de vontade e perseverança, dar finalmente a volta por cima. Fato é que, talvez desde fins da década de 1980 (quando, por exemplo, os sem-teto habitaram o cinema de John Carpenter, heróis de seu pós-apocalíptico Eles vivem ou irônicas manifestações do mal em O príncipe das sombras), os pobres norte-americanos não tenham sido tão matéria de ficção quanto agora, num momento pós-Katrina.

Em À procura da felicidade, a frieza do projeto, desenvolvido de maneira evidentemente calculista, às vezes transparece. Na seqüência-chave do filme, aquela em que Smith/Gardner conduz seu filho ao refúgio temporário e improvável de um banheiro pútrido, usando o expediente assaz inverossímil (e algo batido) de recorrer à fantasia infantil para maquiar a realidade nefasta, o filme perde um pouco de sua força. Neste e em alguns outros momentos, as coisas entram em conflito: de um lado o mr. Smith, carisma à toda prova; de outro, o produtor Smith, em busca do money shot, ou do momento que ofereça ao ator a oportunidade de brilhar. Há, em momentos como este, ecos do cinema italiano mais populista e sentimental (A vida é bela vem à mente). Mas, como em todo melodrama, não é a consciência de que o golpe dramático virá, mais cedo ou mais tarde, que prejudica a experiência do espectador; mas antes, aqui, o relato trava quando a ilusão é rompida por arroubos narcisistas do astro/produtor.

De um astro tal, porém, é de se esperar algo além de carisma e narcisismo: talento, inteligência, atitude e risco. Com sua produtora Overbrook, Smith vem colecionando uma lista de projetos que demonstra cada uma de suas qualidades: dedicação (em Ali), atitude (Eu, Robô) e, sobretudo, inteligência (Hitch – que, confesso, não apelou a este crítico, ainda que admirador confesso do ator). E um dos riscos assumidos aqui, a escolha do italiano Gabriele Muccino foi talvez a melhor cartada de Smith. Um jovem diretor que entende o apelo comercial e não força a barra no sentimentalismo, Muccino conduz a história com leveza, agilidade, uma curiosidade legítima sobre as personagens e afeto em relação ao seu universo.

Muccino constrói um filme de suspense em que Gardner/Smith corre contra o tempo, tentando impedir que o pouco dinheiro que carrega no bolso acabe antes do dia terminar. A jornada empreendida na pobreza, não em nome da sobrevivência, mas de superação pessoal e sucesso profissional, é entendida aqui como uma série de contratempos a superar no curso das duas horas de projeção. O italiano demonstra sensibilidade no trato da narrativa e da imagem – e também bom senso: quando a câmera tem de servir a Smith e a seu filho, lá está ela – no devido lugar. Às vezes na corda bamba, Muccino não se deixa abater pelos desafios de manter o projeto inteiro, permitindo que toda a ambigüidade entre fantasia e pragmatismo se instale sem maiores sobressaltos. O exercício por vezes falha, mas é admirável.

Mesmo que haja o cuidado de circunscrever a história em contexto de época (Reaganomics, legiões de sem-teto), não é de estranhar que, para esta história com final feliz, a questão racial seja praticamente invisível, ou que o caráter do mais terrível dos yuppies provoque inveja em Papai Noel. Para Will Smith, embaixador do cinema americano em quase todo o mundo (a Premiere americana já o anunciou maior que qualquer outro fora dos EUA), a cultura do sucesso, com alguma dificuldade e com um reservatório de alma, é a idéia de felicidade a perseguir.


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