Horas de Verão (L’heure d’été),
de Olivier Assayas (França, 2008)
por Fabio Diaz Camarneiro

Objetos de afeto

Nos arredores de uma casa de campo, um pequeno grupo de crianças corre entre as árvores. Eles brincam durante as “horas de verão”, momentos da infância que permanecem guardados na memória. Descobrem um papel em branco; é um mapa do tesouro, escrito com tinta invisível. A brincadeira continua, eles retornam a casa e, de certa forma, o filme começa. É o aniversário de 85 anos da matriarca da família, que coleciona as memórias de suas próprias “horas de verão” em vários objetos: obras de arte, quadros, móveis art nouveau.

A figura que dá sentido a todo esse inventário é um pintor, antepassado famoso que viveu seus últimos anos na casa. Frente à iminência da morte, a matriarca começa a imaginar o destino daqueles objetos. Não se trata apenas de preservar a memória desse antepassado, mas de toda uma época, de uma determinada sensibilidade. Os três filhos da matriarca lidam de formas distintas com esse passado impregnado nos objetos da casa: a filha é designer, uma artista perfeitamente integrada à lógica da mercadoria. O filho mais novo, por sua vez, é ainda mais integrado: jovem executivo de uma multinacional que o designou para a China. O mais velho, contudo, é um idealista: economista que critica seu próprio ofício, ele parece deslocado na vida prática.

A questão do espólio da família vai impor que essas três pessoas se encontrem repetidas vezes. As diferenças entre eles darão o tom desses encontros, mas Assayas evita o drama familiar e as emoções exacerbadas. O interesse não está nos personagens, mas nos objetos. Os mortos habitam cada uma daquelas peças, que exalam memórias, lembranças, segredos, mistérios. Como quantificar isso? Estamos lidando com as diferenças entre relevância história e valor de mercado; entre memória afetiva e necessidade prática. Assayas não deixa de ser irônico quando a empregada da família guarda para si um vaso “sem importância” (na verdade, uma peça de renomado designer de objetos). Podemos também lembrar uma frase de Oscar Wilde, a respeito de um mundo que “conhece o preço de tudo e o valor de nada”. Eis um dos problemas centrais de Horas de Verão: a obliteração da memória em favor da velocidade da vida moderna, representada pelo telefone celular. Objeto onipresente, necessidade incontornável da vida moderna, o celular sempre acompanha os personagens. Porém, ele é também o símbolo do descartável, da obsolescência dos objetos do mundo contemporâneo, da amnésia das coisas.

Nesse estado de coisas, o único espaço que resta para a memória dos objetos é o museu, onde os objetos do mundo precisam ser catalogados, classificados, fechados em um ambiente hermético, impessoal; longe das pessoas e do tempo presente. Assayas ensaia dizer que os museus se aproximam de cemitérios; as obras ali expostas, de túmulos; as plaquetas nas paredes, de lápides. Uma das cenas mais lúgubres de Horas de Verão não acontece no cemitério, mas no museu, quando os personagens observam uma mesa em exposição. Será essa a única maneira dessa memória sobreviver? Organizadas em catálogo, avaliadas por um especialista, ostentando uma etiqueta com uma cifra?

Ao apontar esse estado de coisas, Assayas aponta uma solução: o afeto. Como na brincadeira das crianças, no início do filme, parece que precisamos contar com mapas escritos em tinta invisível, ou seja, buscar guardar as lembranças de eventos que, à primeira vista, pareceriam banais, corriqueiros: os pequenos eventos da vida. Daí a importância do incidente com a filha adolescente de um dos personagens (algo aparentemente desconectado da narrativa principal) e também o momento em que a vida novamente preenche a casa de campo, nas últimas seqüências do filme. O afeto de Assayas pelos objetos se manifesta em planos longos que evitam o espetáculo ou o sentimentalismo. As coisas são o que são, e nada poderia ser mais belo.

Existe nessa idéia a busca por um certo realismo: além dos museus, as memórias dos objetos talvez podem sobreviver quando impressas nos fotogramas de um filme de cinema. Assayas recomenda que os homens que vivam plenamente, um pouco como adolescentes: celebrando a amizade e a beleza, quebrando regras... Como se viver plenamente fosse a única rota de fuga para a transitoriedade do mundo. Nesse sentido, Horas de Verão é um ao mesmo tempo delicado e contundente convite à vida.

Outubro de 2008

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