Hiroshima (idem), de Pablo Stoll
(Uruguai/Argentina/Colômbia/Espanha, 2009)

por Juliano Gomes

Veja esta canção

Logo no início de Hiroshima, temos um longuíssimo plano que acompanha, sem corte, o trajeto de um jovem, do seu local de trabalho até sua casa. Em poucos minutos se identificam todas as filiações, já consolidadas em grande parte do dito cinema de arte atual: gosto pelo mutismo, planos alongados com personagens vistos de costas, recusa de abordagem psicológicas e interpretações inexpressivas dos atores - só pra citar as linhas mais gerais desse projeto, no qual Hiroshima se insere assumidamente. Entretanto, interessa mais aqui a maneira pela qual Stoll dribla essa cartilha com bastante habilidade e constrói um filme que, mesmo irregular, reconfigura questões importantes de um certo tipo de cinema bastante em voga no circuito de festivais e transcende a mera repetição de procedimentos do "bom gosto contemporâneo".

Hiroshima é um musical mudo. É perpassado por longos trechos de músicas, que, em geral, têm a justificativa diegética de que Juan, o personagem que acompanhamos durante os 80 minutos de filme, ouve seu discman durante seus trajetos por Montevideo e arredores. Filme mudo pois, apesar do som direto, as falas dos personagens não são ouvidas: não emitem som e a elas se segue uma cartela (com molduras ressaltando a já evidente referência ao cinema mudo). Temos, assim, o som ambiente, os ruídos, as músicas, a fala indistinta de um bebê, mas não ouvimos a fala entre personagens. Só podemos lê-las, após os movimentos labiais. Há comunicação aqui, mas ao mesmo tempo há um espécie de alheamento de Juan em relação às outras pessoas. Suas respostas são quase sempre monossilábicas. Mas a incomunicabilidade, que parece ser a tônica nesse procedimento, se contrapõe ao seu trajeto espacial durante o filme: Hiroshima é um filme de deslocamento, mas não de deambulação. Juan não está perdido.

É o deslocamento, o caminho que leva de um ponto ao outro, que importa mais ao filme. Parece haver um desejo de cartografia, de mapear um espaço comum, de torná-lo imagem para  tentar preservá-lo.
O pertencimento que está em jogo aqui é do homem com seu espaço, e o filme trata exatamente de formas de habitá-lo, de estar presente neste lugar específico. Habitar é justamente estar presente em um espaço determinado. É temporal e espacial. A pergunta que se coloca é "como estar junto?" Pois é isso que Juan faz. Sua aparente solidão é criada pelo nosso olhar sobre ele; ele não parece se sentir assim. Seu silêncio é o que permite que escutemos toda a vida dos espaços por onde ele passa, e a música que os preenche. Ao contrário de um afastamento, o efeito desse calar parece clamar pela necessidade de escutar, de escutar os lugares, os ambientes e tudo mais que não fala. O som é um dos sentidos que mais nos dá a noção do espaço onde ocupamos, pois ele nos dá informações de todo nosso entorno. Mais do que a visão, ele é o sentido que nos situa no espaço. Aqui, ele serve ao mesmo tempo para criar desconexão e para gerar uma nova ligação, pois se Juan está de fones, à princípio só focado em si mesmo e não ouvindo os barulhos do mundo, ele parece compensar isso pelo prazer de cruzar os espaços - e a música não cessa sua relação com eles, mas a ressignifica: trata-se uma operação de montagem.

Tal operação de ressignifigação desse "estar" num espaço específico lida, também, com a questão do luto e da família. Hiroshima é o primeiro filme de Pablo Stoll após o suicídio de seu parceiro de trabalho Juan Pablo Rebella (o filme é dedicado a ele), com quem dirigiu Whisky e 25 Watts, filmes centrais da produção recente de seu país. E Juan, o protagonista, é irmão de Pablo Stoll, e interpreta a si mesmo. Hiroshima é também, pois, um documentário sobre Juan: seu estilo de vida, seus amigos, sua namorada e sua família. A cena em que encontra um filme de família no armário só reafirma esse caráter. O que o reconfigura é ele estar ali, no cinema, ter sido tirado do círculo da "família" e exposto ao público. Ele foi colocado à venda, como faz o próprio Juan. E só assim, fora desse círculo, mudando de contexto, de espaço de circulação, é que ele pode adquirir outros sentidos, ganhar uma nova vida. Ao contrário do desejo de preservação que motiva as nossas gravações cotidianas ("para podermos nos lembrar"), aqui é preciso esquecer, deixar, aumentar o círculo, mudar o contexto, para poder permitir que outras relações nasçam daquelas imagens. É preciso deixar os sentidos do passado e começar de novo, tendo atenção absoluta ao presente, se misturando a ele.

Não sabemos nunca "quem é" Juan mas "como ele está". Aí, talvez, esteja o caminho que o filme aponta: estar junto, pertencer, ter vínculo, é compartilhar um mesmo tempo, um mesmo ritmo, uma mesma música. É disso que somos feitos, de repetições (que se evidencia no filme pelas canções pós-punk que Juan ouve). Elas constroem os hábitos e eles nos constroem. Estar junto é compartilhar estes ritmos, essas pulsações (como em Que Horas São Aí? e A Passarela se Foi, de Tsai Ming-liang). É nesse lugar que Hiroshima se torna um filme justamente sobre a comunicação: a canção é a comunicação possível, é onde ele se dirige a nós e emite sua voz, pois a música nos coloca no mesmo pulso, compartilhando o presente. Não por acaso, o filme tem o mesmo nome de sua canção. O filme é a canção de luto de Pablo Stoll. Pois a imagem é sempre um operador de ligação entre os mortos (no passado da filmagem) e os vivos (no presente da projeção). E, através dela, podemos criar novos sentidos, nossos, na solidão habitada e compartilhada (como a de Juan) da sala escura.

Outubro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta