ensaios
A esquizofrenia e o estilhaço da caixa-preta
por Pablo Gonçalo

“Que o ator não se torne o sedutor dos autênticos”. Ao menos é o que martelava Nietzsche na sua conhecida polêmica contra Wagner. Obviamente, o contexto cultural da frase é bem diferente do nosso. Naquela época havia uma distinção clara entre a autenticidade e a atuação, como se o ato estético e criativo fosse essencial e unicamente nobre. Hoje, sob o paradigma da performance e da ambiência, essas mesmas fronteiras revelam-se bem mais turvas e confusas, nos conduzindo a outros desafios. Atua-se em casa, nas ruas, de frente para câmera, dentro do carro – em qualquer lugar, a toda hora.

O ator, eis uma chave para mergulharmos em Holy Motors, último filme de Leos Carax. Na verdade sequer sabemos se o protagonista – com um vago nome de M. Oscar – é de fato um ator, ou mesmo um protagonista. Ele é muitos, e, assim, acaba sendo nenhum. Mais do que atuar, ele executa dossiês de forma pontual, precisa, profissional, realiza encontros fortuitos, totalmente disparatados, e parece realmente trabalhar dentro daquela imponente limusine branca que desfila por Paris. Na dúvida da atuação – ou no lapso de verdade que apenas a atuação imprime – percebe-se que ele performa por papéis os mais versáteis: uma velhinha pobre na Pont Neuf; uma sessão de transa cibernética; um louco que, ao som dos corvos, sai do esgoto para comer flores e dinheiro, roubar cigarros, e espantar transeuntes; um assassino profissional; um músico que toca acordeão dentro de uma igreja; um velho à beira da morte; e um pai que, de madrugada, busca sua filha adolescente numa festa. São situações menores, voláteis, short cuts, breves e irregulares, que não chegam a formar um arco dramático teleológico ou totalizante.

O interessante é perceber como esse mosaico de situações duplica as sensações do espectador cinematográfico – e aqui, nas retinas do voyeur, encontramos, talvez, o cerne da aposta de Leos Carax. Não é por acaso que o filme começa com três seqüências aparentemente desconectadas. Na primeira: um brevíssimo trecho dos experimentos cinematográficos de Marey, anteriores à data do surgimento do cinema. Veloz, parece uma falha (poética) da película. Na segunda, um homem dentro de uma caixa-preta, um cenário que parece um hotel, mas remete a um estúdio de cinema. Este homem é o próprio Leos Carax, e ele acorda subitamente como se despertasse de um sonho. Vaga pelo quarto, tal como um sonâmbulo. Seu dedo transforma-se numa chave. À sua frente, uma porta, na qual o dedo-chave emperra. Ao abri-la, entre murros, a terceira seqüência, uma surpresa: espectadores cinematográficos no instante em que vêem um filme.

A cena assim permanece por algum tempo: a platéia e os espectadores duplicados. Como se fosse um espelho encantado com o gesto de não representar o mundo tal como seria – império esse da mímesis e da arte realista – mas de tão-somente rever a magia da experiência cinematográfica. O filme instala-se nessa zona de indeterminação entre o espetáculo e sua observação. Nem transparente, nem opaco. Evoca-se precisamente o instante da ficção, da fabulação, da projeção e das múltiplas identificações, justapostas, sem hierarquias, tal como numa parataxe. Num dos momentos de descanso de M. Oscar, ele encontra, dentro da sua limusine, um homem misterioso, interpretado por Michel Piccoli, que afirma: “a beleza está no olho de quem vê”. É o ato esquizofrênico do espectador que projeta-se em muitos; quer ser tantos, quer ser outro. O gesto de curtir a performance, assim, transforma-se, uma vez mais, no ato inaugural da fabulação.

Leos Carax busca costurar essas fagulhas da ilusão cinematográfica para, súbita e inesperadamente, interrompê-las e começar outra maquinaria sugestiva. Mais do que uma crítica à ilusão, há um gesto poético de enjambement; a quebra de um verso – ou de uma estória – que coliga-se com outra ambiência, já diferente, convidando a novas sendas. Qual espectador não tem um certo prazer em sentir-se um tanto perdido? É justamente essa sensibilidade, esse contentamento, que o filme explora. Nesse sentido, Holy Motors se aproxima de Entr’acte de René Clair, de 1924, título este que surge estampado num dos dossiês de M. Oscar. Passeia-se, naquele filme, por uma Paris eivada pelos desvarios dos surrealistas. A errância e os faux-raccords de Clair dão lugar, aqui, à diversidade de gêneros. De alguma maneira, percorremos trailers de um filme na variação das prateleiras das antigas locadoras. Os gêneros de Carax, no entanto, não são puros, mas trans-modificados, mesclados num grau ímpar de trituração que os torna únicos. No mesmo diapasão do cinema contemporâneo, na sua chave alternativa – e mais cínica – os gêneros aqui funcionam como uma isca de códigos iniciais para convidar o espectador a redescobrir o cinema e sua potência sensível.

Este flerte entre a fantasia e os gêneros aproxima Holy Motors à obra de Raul Ruiz. Basta evocar Mistérios de Lisboa, a última obra-prima do cineasta chileno, para ver como dali parte-se do melodrama para costurar situações inusitadas, histórias intercaladas, cheias de nós e pontos de encontro mas que não conduzem a nenhuma explicação sobre o próprio enredo ou o personagem. São apenas instantes. Dos gêneros, das suas regras repetidas e da sua força fabulativa, entra-se em outras esquinas e descortina-se histórias – sobretudo afetos e sensações – antes inusitados. São desvios abruptos de um narrador auto-consciente. De um estilo que prefere a mudança, as histórias e suas curvas, para manter a graça que há no ato de narrar – e isso é bem distinto de um paradigma surrealista. Tanto em Ruiz como em Carax, não ensaia-se uma redenção, mas um lapso, entre fugas, cuja pretensão maior revela-se como um toque de louvor ao encantamento do cinematógrafo.

Da caixa-preta passa-se à limusine. É curioso perceber como Carax sai da imobilidade física da poltrona de cinema para um espaço tão peculiar, que é este carro alongado. Nesse viés, o espectador deixa de ser um ente especificamente restrito ao espaço da sala de cinema e ganha mobilidade, torna-se disperso, constantemente em trânsito. É como se a caixa-preta, contígua à câmera obscura, fosse estilhaçada por um fluxo audiovisual contínuo e ininterrupto. Lembro de um interessante ensaio do Canclini sobre os transeuntes nas metrópoles contemporâneas, como México, São Paulo, Paris e Nova York, que, carregando seus walkman e celulares, conotam ao velho hábito da flanerie um certo quê de videoclipe. O espetáculo, assim, torna-se individual, atomizado, vertiginoso, cadenciado por uma combinação randômica entre a playlist de cada um com as imagens metropolitanas.

Carax, contudo, não filma videoclipes. Por isso, a limousine – ela se torna um lócus fronteiriço que teima em vislumbrar certa nobreza num tipo de espectador mais clássico, e claramente decadentista. Sutilmente, Holy Motors transforma-se num “filme de cinema”, como costumava brincar Sganzerla, no sentido mais genuíno e vintage do termo. Um filme-limiar. Um espaço indefinido e transitório, onde o cinematógrafo – e toda sua maquinaria espetacular – pulsa de forma efervescente, em ebulição, mas, também, prestes a evaporar.

Janeiro de 2013

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