ensaios
Pensar é estar doente dos olhos
por Raul Arthuso
Holy Motors é um filme romântico. Isso significa (ou melhor, sugere) que:
1. Não é um filme
que se deixa agarrar. Como bem apontou Fernando Ganzo, em
crítica na revista Lumière, várias das
“modalidades” do cinema de autor contemporâneo
estão presentes em Holy Motors (retrabalho com
o gênero, autoficção, realismo social, interlúdio
musical), mas, em essência nenhuma está. Há
uma paródia ligada à rebeldia guerrilheira que se
apropria do artefato conceitual do poderio dominante para desarticulá-lo.
Sua irreverência é a granada nas estruturas reinantes
do cinema contemporâneo. Os dados mais sensíveis,
materializados nas encarnações de Denis Lavant,
andam no fio da navalha; carregam a maldição de
existirem, mas não serem. A walking contradiction;
2. Corre por ele um amour fou –
irreverente, urgente, melancólico – destinado à
tragédia. Esta é a maldição do eterno
retorno: entrar e sair da limusine asséptica que conduz
o protagonista (Oscar? Merde? Alex? Carax?). Enfim, viver várias
vidas todos os dias e não viver nenhuma;
3. Como toda obra romântica, Holy Motors
não precisa de defesa. De fato, não precisa de ninguém.
É uma primeira pessoa que manifesta todas as forças
em desequilíbrio dentro de si. Carax, Lavant, relação,
espaço, hiato. Preencher o vazio. Uma primeira pessoa:
Holy Motors é uma busca desinibida pela justeza
de sua existência.
4.
Contrariamente ao que o senso comum em volta do romantismo (e
que já atingiu o filme) sugere, Holy Motors é
um filme de extrema sabedoria. Sim, há saborosas molecagens,
mais claramente visíveis nos arroubos de humor da seqüência
de Monsieur Merde e Kay M. e sua apropriação dos
filmes de monstro japoneses, o final da cena com o velho em seu
leito de morte, o último plano de Denis Lavant com seus
familiares primatas, a conversa de limusines. Carax parece, contudo,
ter pleno controle da força narrativa de seus moods,
a alternância de adagios e allegros –
busca o desconserto na emoção, o humor na dureza
(as lápides com a inscrição “visitez
mon website”), a beleza no grotesco. Sua justeza está
no paradoxal. Holy Motors é o filme mais concreto
de Leos Carax: suas imagens não são a perseguição
de um ideal, mas a constatação da defasagem em relação
a ele. Sua melancolia é uma tomada de consciência
e não uma lamentação. Sua rebeldia é
a insistência.
5. Desde Lumière, o cinema está
fadado à morte (técnica, econômica, artística).
A história da arte cinematográfica é uma
dialética com esta sina e todos os grandes cineastas (e,
por conseqüência, seus grandes filmes) foram aqueles
que dialogaram intimamente com essa morte. O cinema clássico:
o nascimento na primeira imagem, a morte na última. O cinema
moderno: a morte na primeira imagem, o renascimento na segunda
para morrer de novo na terceira. Para um cinema que credita sua
contemporaneidade à redenção (trazê-lo
das cinzas), Holy Motors marca a morte como o legítimo
tempo do cinema: morrer num plano para renascer no seguinte (e
morrer de novo para renascer no seguinte). E, por isso, reviver
no cinema, do primeiro ao último: Marey, Chaplin, Godard
e Avatar.
6.
En passant: existe um plano mais preciso e desaforado
para metaforizar o artista hoje do que este primeiro: acordar
em um quarto de hotel e adentrar uma floresta negra por uma improvável
porta escondida no papel de parede?
7.
Mais que sua estrutura em momentos, a lógica das encenações
e de assumir várias vidas (e pensar em Fernando Pessoa
é inevitável ao lidar com o filme) ou suas subversões,
o que torna Holy Motors fundamental ao cinema hoje é
o que está dentro de cada uma de suas células. Pois
Carax realiza o mais simples, irracional, perigoso e saboroso
dos gestos ao enfrentar a ficção que coloca para
si. Sim, Monsieur Merde é uma paródia de Godzilla,
mas não se furta de sua história dentro do filme
(uma paródia da paródia de A Bela e a Fera).
Três momentos deixam isso mais evidente: a historieta entre
pai e filha no automóvel; a morte do velho à beira
da cama após um diálogo com sua sobrinha; e o belo
momento de confrontação com o passado de Oscar/Denis
Lavant e Eva/Kylie Minogue, no que restou de La Samaritaine, loja
cujo edifício está presente em Os Amantes da
Pont-neuf.
Se a idéia de encenação é muito clara
dentro da paródia geral do filme, essas três cenas
carregam em si a potência do artesanato que permite a cada
uma chegar ao máximo de sua emoção. Escapam
do mero referencial. A canção de Kylie Minogue é
exemplar: ela nos coloca num estado de profunda dor, mas logo
no momento seguinte Minogue tira a peruca e o sobretudo, suspende
essa melancolia, revelando sua próxima encenação.
Momentos depois, Oscar encontra a mulher caída na rua,
depois de ter se jogado do prédio – a dor da cena
é retomada e levada ao extremo. Pois, Holy Motors
não é um filme intelectual – seu corpo é
emocional, carnal. Não é pós-modernista,
pois parte de emoções profundamente clássicas.
Como na canção "Bohemian Rhapsody", do
Queen, há a balada melancólica, o burlesco, o rock
n’ roll num encadeamento irreverente próprio
do glam rock; mas ainda assim, é uma canção
melancólica, burlesca e roqueira em seus sentimentos. As
paródias de Holy Motors fazem troça, mas
reafirmam suas potências essenciais. E todas elas passam
necessariamente pela emoção.
8. O cinema é uma arte do tempo. Ser um
tempo, mas ser todos ao mesmo tempo: o entreato musical é
a afirmação desse postulado. Percorrer os espaços,
dançar pelo vazio, traduzir o som do mundo em ritmo, comungar
uma teatralidade coletiva, articular sua própria imagem,
esculpir o tempo de cada movimento.
8½.
Como Carax insiste em diversas de suas entrevistas, Holy Motors
não é sobre o cinema. O filme é calcado sobre
as bases do cinema e seu exercício de fé, a cinefilia.
Porém, está muito mais voltado ao cinefílico,
ao cinematográfico. Sua melancolia reside fundamentalmente
nessa imagem: a chegada de Carax numa sala de cinema com o público
já adormecido diante do que se desenrola na tela (nunca
vemos seu conteúdo). Abismado por esse sono, Holy Motors
é uma tentativa de restituir a fé nos filmes, num
ato libertador de uma escritura empoeirada pelos vícios
do tempo. Uma nova escritura. Ou melhor, à escritura de
novo – a mise en scène. Religare.
Móbil.
9. Arrematando: Denis Lavant é o cinema.
10. Holy Motors é uma obra libertadora.
Está para o cinema de seu tempo como "A Sagração
da Primavera" de Stravinsky estava para a música da
virada do século XIX para o XX: não um ponto de
culminância formal, nem a revolução total,
mas a inflexão ao libertador, ao inesperado, ao gesto (romântico)
da criação artística. Uma afirmação
essencialmente romântica de parar o tempo – algo fadado
ao fracasso, evidentemente. Mas, principalmente, como lidar com
o fracasso de chegar depois? Como mostrar o não-visto
quando isto parece impossível? Como fazer como se fosse
a primeira vez: o primeiro amor, o primeiro impulso, o primeiro
cinema? Religare. Essa é parte da tragédia
de Holy Motors: recusar-se a fazer a última imagem.
11. A rebeldia de Holy Motors o leva
ao abismo. Em certo momento, o misterioso personagem de Michel
Piccoli trava o seguinte diálogo com Oscar/Lavant, enquanto
este se prepara para o próximo encontro:
Piccoli – Você já pensou em parar?
Por que ainda faz isso?
Oscar – Pela mesma razão pela
qual eu comecei: a beleza do gesto.
Piccoli – Mas dizem que a beleza está
no olho de quem vê.
Oscar – Se ninguém vê
mais?
A beleza do gesto. O gesto do filme: existir. É preciso
afirmá-lo para os que pensam o cinema como subterfúgio
da alma – o cinema é essa rebeldia de existir. Sua
insolência é a do natimorto, do filho bastardo, do
démodé. E então, não há
nada mais contemporâneo do que ser realmente romântico:
apaixonado, idealista, rebelde, insolente, patético. Mas
o cinema está fadado à morte. A tragédia,
então, é existir. Holy Motors não
precisa de ninguém; sua luta é para que precisemos
dele. Fomos nocauteados.
...
Trois, douze, merde!
Tais palavras poderiam ser as últimas de Oscar/Lavant:
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir...
Dezembro de 2012
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