in loco - cobertura do Festival do Rio
The Holy Mountain, de Alejandro Jodorowsky
(México/EUA, 1973)
por Eduardo Valente
Agressão
afetiva
Antes de entrar no Espaço Unibanco quase às 0h
desta terça-feira, eu só conhecia o cinema de Alejandro Jodorowsky
de relatos de amigos. Por eles, tinha alguma expectativa, mas
confesso que também um certo grau de ceticismo, já que muitas
vezes (especialmente com filmes da década de 1970) os anos são
cruéis com alguns filmes e cineastas adorados por vários conhecidos,
e que acabam não me dizendo muito. Pois, lá pelo meio da primeira
seqüência de The Holy Mountain (título que, sabe-se lá
por qual motivo, o Festival do Rio resolveu “traduzir” para espanhol
na sua programação), qualquer resquício de descrença já tinha
abandonado meu corpo: o cinema de Jodorowsky é de verdade.
Descrença e verdade são duas palavras curiosas
para se referir a este filme em especial, visto que religião e
misticismo estão mais do que no centro de suas atenções. Ao longo
do filme, Jodorowsky realiza um cinema curiosamente profano e
religioso ao mesmo tempo. Lendo entrevistas dele, depois, pude
entender alguns dos motivos para esta sensação que tive, pela
maneira como ele fala com enorme interesse e admiração, por exemplo,
pela figura e os ideais de Cristo, mas sem grande valor pelo seu
uso pelo catolicismo institucionalizado.
Foi da mesma entrevista (que pode ser lida em
XXXX) que eu tirei a frase que me serviria como chave para dar
conta da minha reação ao filme: “a agressão é afetividade”, diz
Jodorowsky. E isso resume bem a sensação que tive ao final da
projeção: no meio de um cinema extremamente crítico, às beiras
do cinismo muitas vezes, e com inegável intenção de causar reação
na platéia, as entrelinhas deixam ver um olhar para o mundo surpreendentemente
afetuoso. Isso fica claro especialmente no final do filme, quando
vemos que toda sua estranha odisséia termina com um inesperado
chamamento ao amor e à vida. No entanto, este chamamento vem embrulhado
num coquetel altamente explosivo, que mistura sem medo o humor
e o horror com incrível simultaneidade (alas, as três palavras-chave
do movimento Pânico, do qual ele é um dos fundadores).
Se
é bem sabido que Jodorowsky é uma figura e tanto, sendo não só
cineasta, como escritor, dramaturgo e quadrinista – e, talvez
acima de tudo, “bruxo” (as aspas vão pelos diferentes entendimentos
da palavra), meu maior choque com o seu cinema, através deste
filme, foi mesmo pela sua capacidade audiovisual, seu olho incrivelmente
apurado que consegue algumas das composições e movimentos de câmera
mais impressionantes que vi em algum tempo. Entre as claras influências
de Buñuel, e o diálogo com uma série de artistas plásticos e dramaturgos
do seu tempo, Jodorwsky tem uma voz e pegada próprias. Algumas
de suas imagens, esfuziantes e horríveis ao mesmo tempo, são difíceis
de apagar da memória. O homem que sobe a torre, a sala com as
cores do arco íris, o “Bar Pantheon”, as numerosas estátuas, as
putas na Igreja... Difícil enumerar todas elas.
Não sem alguma razão, alguns amigos revelaram
revolta com o uso que o filme faz de animais – embora eu ache
que na maior parte das vezes o quase sufocante excesso de bichos
na tela mostra uma visão quase idealizada destes. Mas, de fato,
especialmente na seqüência com os sapos e camaleões pode-se dizer
que Jodorowsky excede os limites – mas, talvez o que ele queira
justamente é questionar estes limites. E, embora eu não tenha
a menor vontade de reproduzir uma experiência semelhante, é inegável
a força que ela produz na tela, sendo justamente esta uma das
grandes seqüências do filme.
Fato é que o cinema de Jodorowsky em The Holy
Mountain é uma experiência única – e isso está cada vez mais
difícil de se dizer de algum filme. Principalmente por isso, no
meio de um festival de cinema é programa obrigatório.
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