in loco - cobertura dos festivais
O Homem que Anda (L'homme qui marche), de Aurélia
Georges (França, 2008) por Eduardo Valente
Apagando-se
O
caminho na vida do personagem-título de O Homem que Anda, Viktor Atemian
(versão ficcional do verdadeiro Vladimir Slepian), é o do apagamento de si mesmo
– ao ponto de, num determinado momento, decidir de um dia para o outro que quer
ser chamado pelos (pouquíssimos) amigos que lhe restam por um outro nome (Harry
Stephan). Pelo menos como concebido na tela por Aurélia Georges no filme, ele
recusa constantemente a possibilidade da identificação com os outros na tela –
e, por conseguinte, recusa também a identificação do espectador, o que, como sabemos,
é a regra do jogo na ficção cinematográfica tradicional. Portanto, o desafio que
Georges, estreando em longas, se impõe ao decidir acompanhar este homem não é
nada desprezível. Ela decide acompanhar esta trajetória
através de uma série de cenas que vão compondo praticamente duas décadas da vida
do personagem por uma Paris onde ele aparece a princípio como um imigrante soviético
(o filme começa nos anos 70) trabalhando com tradução e lançando um primeiro romance,
e vai aos poucos se retirando de todo contato com as outras pessoas e o mundo
prático. Esteticamente, a câmera de Aurélia Georges pouco chama atenção para si
– assim como a iluminação ou a arte, ou qualquer outro elemento expressivo. Mais
do que um realismo de registro, o que se parece buscar é a ausência, ou o que
poderíamos chamar também de um quase apagamento de si mesma como presença-diretora
do filme. Atemian/Stephan/Slepian
é interpretado por César Sarachu, dono de um porte físico que nos faz pensar desde
o começo em João César Monteiro (ou Jacques Nolot), mas com um rosto que remete
a um Buster Keaton cujo corpo não se presta à comédia. Sarachu incorpora na sua
presença física a tentativa do apagamento de si mesmo que o personagem propõe:
quando há emoções, elas se expõem de maneira absolutamente repentina e sem trabalhos
de “construção”. Seu Atemian é um homem de pedra, em muitos sentidos: embora ele
vá radicalizando sua relação com o entorno na medida em que os anos passam, temos
a impressão de que, desde que o filme o encontra na primeira sequência, ele já
tem todo o seu consciente (e subconsciente, já que Lacan e a psicanálise entram
bem lateralmente no filme como tema presente) formado, mantendo-se quase impassível
ao que acontece à sua volta. Neste sentido, quando entram
em questão algumas das poucas características específicas do personagem mencionadas
no filme (a referência ao passado do pai ou sua recusa ao mundo dos “homens de
barriga cheia”), estas acabam ganhando o peso de uma “explicação”. E aí, por mais
que o filme pareça querer fugir da psicologização e da psicanálise, acaba encontrando
com ela em determinadas esquinas (seja por conta de suas opções ou do simples
fato de que nossa percepção da ficção tende a isso). Como resultado, acompanhar
a trajetória deste homem que parece de pedra, mas com traços de psicologia ficcional,
através do trabalho de uma diretora que se apaga como instância de relato, resulta
num exercício bastante delicado e irregular, de aproximação e distância com a
tela. O que, de novo, talvez tenha muito a ver com o homem que se quer mostrar
– e aí ficamos com a dúvida se rigor e coerência são caminhos que devem ser buscados
como bens em si por um filme ou se acabam se tornando algo mais teórico do que
prático no exercício da arte. Respostas que O Homem que Anda não dá (nem
se propõe a isso), mas que nos instiga por fazer perguntar. Setembro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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