Um Homem Sério (A Serious Man),
de Joel e Ethan Coen (EUA, 2009)
por Cléber Eduardo

A idéia e o cinema

Um prólogo aparentemente sem relação direta com o restante do filme lança a primeira interrogação e a primeira idéia em Um Homem Sério. Nessa introdução, ambientada tempos atrás em alguma comunidade judaica européia, um velho rabino, dado como morto, reaparece diante de um casal – primeiro, para ele; depois, para os dois. Há uma nevasca lá fora e, para fazer um agrado ao rabino, o homem oferece sopa. A mulher, desconfiada da condição fantasmagórica do convidado, dá-lhe uma facada. O rabino, faca encravada no peito, sai da casa. Diz saber quando não é bem vindo. Nós e os personagens não sabemos se está morto ou prestes a morrer. O absurdo como ponto de partida do mundo ficcional está dado. Nós e os personagens não encontraremos certezas para as dúvidas. Diante de interrogações, naturais diante dos absurdos, só haverá exclamações. Porque nenhuma resposta será possível diante da lógica sem lógica da vida. Uma idéia.

Isso posto, o que se vê, na hora e meia posterior, é a lógica do absurdo. Temos à frente um professor de matemática que, com problemas a lidar com um aluno coreano, com a esposa infiel, com rabinos sem respostas e com um irmão atazanado pela polícia, vê sua vida ir ao fundo do poço. A estratégica dramática e narrativa é puxar a corda do sofrimento até nenhuma queda ou má notícia surtirem mais efeito. Porque quedas são a lógica da vida. Simples assim. O desafio é transformar essa visão de vida em situações ricas em si mesmas para superar o estágio de ilustração de uma idéia de mundo e de personagem. Porque depois de meia dúzia de episódios, que estão na tela para mostrar mais um degrau a ser descido pelo protagonista, as setas e vigas narrativas começam a se evidenciar.

Personagens e situações explicitam as representações, assumindo a intenção de lidar com imagens de algo, não algo na imagem. A idéia não vira cinema. O cinema vira idéia. Essa alta carga de consciência da representação é comum aos Coen. Alguns de seus filmes só existem em função disso: a demonstração de consciência da mediação e de uma inteligência dessa consciência, transformando-a em cimento de sua linguagem visual. No entanto, em alguns momentos, o cinema, resultado, retorna à idéia, isso quando sai dela e a transforma. Porque há sempre o risco de nem partir da idéia para o cinema. Risco de estacionar na idéia e transformar cinema em estacionamento; não em um local onde idéias e estímulos estão em movimento, em conversão e em reformulação, de modo a nutrirem a ficção, mas sem resistir a ela, como se a resistência fosse uma forma de circunscrever a centralidade de visão

Se, na maior parte do tempo, temos de conviver com essa decisão de esticar a corda até o limite na imposição de sofrimento e adversidades ao protagonista, como se em um mundo de malucos ele tivesse sido escolhido para ser a vítima principal, há ao menos três sequências nas quais o cinema se sobressai ao ponto de vista narrativo dos Coen: toda a narração do rabino sobre as mensagens nos dentes de um gói, a lousa tomada por equações sem promessas de respostas e a imagem do tufão a sintetizar todo o estímulo do filme. Exceção feita a esses três momentos de primeira grandeza, os demais soam mais como produto de uma fórmula da obsessão, ou de um marketing autoral da crueldade com risinho maldoso de canto de boca – que é o combustível e o teto baixo dos filmes da dupla.

Março de 2010

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