ensaios
Objetos, fluxo e memória
Café Lumière e a micro-história
por Lila Foster

Café LumièreA primeira coisa que escutei quando saí da seção de Café Lumière foi "nossa, este é um filme sobre nada". O tom obviamente não era elogioso e se o nada que a espectadora evocou diz respeito à incapacidade de uma narrativa nos amortecer com cortes e ações, Cafè Lumière é realmente um filme sobre nada. Mas onde a pouca ação existe, a vida vai surgindo em todos os pequenos detalhes, não sem abandonar o melhor que o cinema pode nos trazer.

Entre os sons que preenchem quadro, falas negadas e rostos encobertos, Cafè Lumière é uma obra que pulsa muito, mesmo com todo o seu minimalismo.
Produzido em comemoração aos 100 anos de nascimento de Yasujiro Ozu pela japonesa Shochiku, o filme foi feito sob inspiração de Tokyo Story. Rodado na mesma cidade, Cafè Lumière também traz os pequenos conflitos familiares, o choque entre gerações, e possui cenas inspiradas diretamente no cineasta japonês: os momentos familiares em volta da mesa, os planos baixos, os móveis em perfeita geometria. A feição da homenagem, no entanto, não funciona como mera referência; ela está em perfeita consonância com a obra de Hou Hsiao-hsien, também um cineasta da duração, dos enquadramentos precisos e da vida cotidiana. Não sendo uma mera citação de tema e estilo, em Café Lumière o diálogo abandona a idéia de precedência assim como é o diálogo estabelecido com Albert Lamorisse em A Viagem do Balão Vermelho e a proximidade entre O Mestre das Marionetes e Plataforma de Jia Zhangke. É o tempo e o espaço estendidos e minuciosamente enquadrados, uma maneira dos personagens estarem no mundo com toda a sua realidade e poesia, que unem todas essas obras.

Café LumièreCafé Lumière acompanha Yoko, que nos é apresentada de costas, conversando ao telefone enquanto estende as roupas no varal. Ela acabou de chegar de Taiwan, uma vizinha "surge" para saber como ela está, mas ela não entra em quadro, só escutamos as suas saudações. Nada de fato acontece, é o seu cotidiano que está em cena: a sua ida ao sebo do amigo Hajime, o deslocamento de trem pela cidade, o tempo trabalhando no café dileto. Numa visita à casa dos pais, talvez uma das cenas mais ricas em sentido pela sua simplicidade, Yoko pede a sua comida favorita, olha em volta da casa e deita no chão para cair num sono pesado logo depois. O cansaço da filha que retorna à casa dos pais se justifica no plano seguinte: à noite, enquanto sua madrasta esquenta sua comida, a falta de diálogo nos suspende e essa sensação só se rompe quando ela anuncia furtivamente que está grávida.

É nesses momentos de silêncio entre os personagens que o filme vai construindo os seus momentos mais potentes. Yoko, mulher de seu tempo, se recusa a casar com o seu namorado taiwanês e pretende ter o seu filho sozinha. O silêncio do pai é agoniante para quem observa e revela o conflito de gerações, assim como o silêncio de Hajime quando ela lhe conta que está grávida sugere um amor silenciado que existe entre os dois. A forma enviesada de demonstrar sentimentos faz com que eles se façam visíveis na relação com a cidade, nos pequenos gestos - como levar uma marmita com a comida favoritas da filha -, na troca de presentes, nas conversas sobre sonhos pelo telefone.

O que vai guiando esses pequenos fragmentos de vida é a pesquisa de Yoko sobre o compositor e pianista taiwanês Jiang Wen-Ye (1919-1983) que, como vários outros personagens de Hou, viveu deslocado e em deslocamento entre Taiwan, China e Japão por conta dos inúmeros conflitos e guerras na região. A busca por documentos, registros, lugares que ele freqüentou instaura de forma material o tempo da memória e a busca por um passado que ora resiste, ora não resiste. A entrevista com a mulher do compósito, quase um mini-documentário dentro do filme em que ela mostra fotos e conta histórias sobre o casal, traz as evidências da vida que Yoko de alguma forma tenta reconstruir. Por outro lado, o café freqüentado pelo compositor foi substituído por um prédio moderno, os mapas do passado obviamente não se traduzem nos mapas do presente e o lugar é silenciado pelo movimento das cidades. Yoko fotografa o prédio como registro mesmo em sua feição atual como um souvenir do que ela não foi capaz vivenciar. Neste sentido, Hou Hsiao-hsien é realmente o cineasta da memória; não a memória imiscuída com uma certa fantasmagoria e assombro de Alain Resnais, mas uma memória calcada na lembrança de momentos já vividos, na beleza dos souvenirs, nas narrativas sobre o passado e na percepção de como a experiência – do amor, da vida nas cidades, da vida familiar -- vai se transformando.

Café LumièreE mesmo que Café Lumière seja um dos seus filmes situados na contemporaneidade, a história, a relação do homem com a memória, a confluência entre os diversos tempos e a forma como o homem a experiência os tempos de transformação, tudo isso converge para a incrível capacidade que Hou Hsiao-hsien possui de construir retratos de época. Alguns dos seus filmes formam grandes arcos históricos, como é o caso Flores de Xangai, O Mestre das Marionetes e Cidade das Tristezas, nos quais as trajetórias individuais vão se misturando com a geografia, se confundem com as histórias de guerras, com Estados e instituições, formando uma superestrutura histórica. Por outro lado, seus filmes "contemporâneos" - como Millenium Mambo, A Viagem do Balão Vermelho, Café Lumière e o episódio Tempo para a juventude de Três Tempos - vão costurando pequenos detalhes do presente maravilhosamente observados e filmados pelo diretor. Os objetos, carregados de significado e afetividade (os filmes em Super 8 de Susanne em A Viagem do Balão Vermelho; a arte gráfica de Hajime; o livro da infância que retorna no sonho; os celulares e as suas mensagens de texto), são quase registros de uma micro-história futura.

E na economia narrativa de Café Lumière, é isso que importará. A câmera observa para transformar o detalhe corriqueiro no que existe de mais expressivo. Por isso não importam começos e fins, mas sim o fluxo expresso na paixão do filme pela circulação nos trens. Fluxo este que só é interrompido por uma música pop que anuncia um fim e marca mais uma vez o quão mergulhado Hou Hsiao-hsien também está no presente, juntando sempre o cotidiano, a memória e a história à sua incrível capacidade de ser um radar para o espírito de cada tempo.

Abril de 2011

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