Harry Potter e a Ordem da Fênix
(Harry Potter and the Order of the Phoenix),
de David Yates (EUA/Inglaterra, 2007)
por Paulo Santos Lima

A serviço da sociologia

Ao nos depararmos com Harry Potter e a Ordem da Fênix, e sua anemia visual, fica claro que ele (assim como os quatro episódios anteriores) interessa mais por aquilo que está antes do filme, ou seja: o seu momento histórico. Concebida para um público infanto-juvenil, com grande ênfase nos joguetes fantasiosos, bruxarias, piruetas lúdicas, paternidades adquiridas, sustinhos, trocinhas, etc, a série vem avançando, filme a filme, na construção de um cenário tenebroso, digno do mais assustador filme de terror. O que há de discutível é justamente a reação magnética do público, a maior parte deles imberbe, alguns bem pequeninos, criança mesmo. É como se a pirralhada estivesse tão consciente quanto adormecida, ou enturmada, com a selvageria apresentada na tela. A pré-juventude tem ciência da violência do mundo, fazendo dela um dado natural, cotidiano?

Esse espelho do mundo — de resto, algo detectável em qualquer filme, pois todos os trabalhos artísticos resultam de um estado de coisas do instante em que são realizados — se faz potente, então, pela conformidade das imagens. Se o episódio de Alfonso Cuarón foi bradado como o melhor da série (o que é fato), isso não se deu necessariamente por uma assinatura autoral do diretor mexicano. Antes disso, há os originais: os caudalosos livros da autora J.K. Rowling. Os filmes adaptam, sob total servidão, um universo criado na literatura. O olhar sobre o mundo, portanto, é de autoria da escritora, das palavras, e não das imagens. Daí o conteúdo ser o que interessa mais aqui – e, consequentemente, o personagem de Harry Potter, que nem corpo é, mas apenas um rosto. E a boa leitura dos cinco filmes se faz justamente nesse semblante. É nele que está o drama, ou melhor, a dramatização, o processo dramatúrgico que vem ganhando peso a cada longa.

O que não significa, claro, que os filmes ganhem necessariamente um relevo visual. Se o cume foi Cuarón e os dois primeiros (de Chris Columbus), os menos interessantes, o motivo parece estar em qual livro foi adaptado, e em quanto a fidelidade servil do respectivo diretor redundou num blablablá nada visual. Daí, de fato, o que fica é a face de Harry Potter. Vamos da magia infantil à figuração política.

No primeiro filme, Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001), havia um menino triste, mas ainda espoletinha, que teria na tal escola de magia Hogwarts o seu novo lar. Uma criança a caminho de conhecer a chaga do mundo, e já devidamente traumatizada (a herança mágica dos falecidos pais e a tal cicatriz na testa são provas visuais disso). Um filme deslumbrado com o “vale-tudo” das bruxarias, e o que, como cinema, fatalmente inclinou a obra a uma tremenda chatice. Em Harry Potter e a Câmara Secreta (2002), ainda de Columbus, estende-se a história do primeiro, e o menino agora assume intenções de liderança em meio a misteriosos assassinatos e ameaças outras, traduzidas na soberba de um professor.

O supervalorizado episódio de Cuarón, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004), mostra um Mal que se espraia pelo que antes era apenas um parque de diversões perigoso. Uma ameaça que faz Harry Potter assumir responsabilidades por uma imposição, como se sob a ordem de um mandato. Mas o thriller cadencia seqüências mais pulsantes, com a massa de informações intercalada pelas cenas de ação, de acontecimentos mais cinemáticos, além de uma tênue sexualidade querendo marcar presença. Já o último antes deste novo, Harry Potter e o Cálice de Fogo (2005), amplifica as ameaças prévias. No artesanato anônimo e industrial do diretor Mike Newell, temos um filme de terror puro e violentíssimo, que inclusive dá rosto ao tal Mal – o que é interessante como elemento presente num filme infanto-juvenil, mas sedimenta um antagonismo entre Bem e Mal, entre Harry Potter e o coisa ruim Voldemort. Potter é o centro do mundo diegético, em missão quase sobrenatural, o que amplia seu papel dramático – mas mingua sua ambivalência, aquela que alternaria o lúdico e o grave.

O mundo representado na série chega, neste Harry Potter e a Ordem da Fênix, ao seu pior: Valdemort é eminência parda do exercício político. Harry Potter, agora, não mais sorri (talvez um pouco quando beija a bela coleguinha oriental). Seu rosto carrega o peso de uma missão árdua, que vai além dos muros de Hogwarts para chegar à política. Ainda que Potter fique fendido entre herdar o lado negro da força ou seguir pelo caminho da luz, e a grande questão deste longa de David Yates continue no embate entre Bem e Mal, a luta migra para o espaço das instituições. Em plena crise administrativa, o Ministério da Magia impõe normas conservadoras a Hogwarts, banindo o exercício de magias. É como uma censura abafasse a criação, não haja dúvida, mas vale ressaltar que Hogwarts professa pela existência do Mal (que o filme legitima também) e que o uso da força mágica pode combater a ameaça. Um belicismo mágico representado por Harry Potter, ídolo infanto-juvenil, que fará de suas mágicas algo próximo de ataques atômicos.

Nessa ótima abstração causada pelo espraiamento das ações (políticos perdidos mas bem intencionados, outros tão fortes quanto cruéis, uma ingerência política que abre o país e o mundo à vitória do Mal), o filme retrocede ao dar vinco maior à figura do Mal e à de Harry Potter. Dando rostos, o complexo jogo político torna-se um mero palco, como ocorre no epílogo do filme, entregue à ação – aliás, bem pouco inspirada na construção das imagens, com campo e contracampo ilustrando o combate verbal entre o antipático Potter e o assustador Voldemort, que tenta cooptá-lo para o seu lado.

Não é tão arriscado dizer que é a fidelidade ao público o que freia e atola os filmes da série Harry Potter. Fidelidade na reprodução dos extensos livros da milionária escritora, mas, sobretudo, em seguir uma fórmula narrativa que há tempos vem se mostrando mais aberta, mais coalhada de “contravenções” (Guerra dos Mundos, de Spielberg, e Missão Impossível 3, de J.J. Abrams, são exemplos dessa abertura a um olhar mais irreverente e crítico sobre o mundo, o real, este que é o cenário de feitura desses filmes). Assim, se os Harry Potter trazem elementos do mundo para a tela, eles são sobremaneira ótimos exercícios sociológicos. Mas como cinema, como imagem, não resta nada além do rosto alvo do ator Daniel Radcliffe – o que faz com que este Harry Potter e a Ordem da Fênix seja o melhor da série, uma vez que Potter, agora adolescente, preso à uma missão esdrúxula, olha, sisudo e em tensão extrema, para um mundo que mostra a sua pior face. A expressão de um adulto maturado pela vida, com o devido pesar de um mártir, como Zapata, ou o Aguirre do filme do Herzog. E os rostos infantis, na platéia, em sintonia contrária, sem o menor espanto boquiaberto. O que é verdadeiramente assustador, pois isso é uma mera (não) reação natural ao estado de coisas atual.

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