ensaios
Um homem e um século
Jonas Mekas: I Am America
por Fábio Andrade

Road to NowhereEm Julho de 2009, a BLT Gallery, em Nova York, realizou a exposição Wiser than God, que chamava atenção não só pelos participantes (Louise Bourgeois, Françoise Gilot, Lucian Freud) mas também por sua proposta: reunir obras de artistas nascidos até 1926 que ainda estavam em atividade. O recorte era uma reação direta ao deslumbre imediatista de Younger than Jesus, que exibia trabalhos de artistas nascidos depois de 1976 do outro lado da rua, no New Museum. Entre as peças em exposição na BLT estava um televisor de 14 polegadas que exibia – em loop, em DVD e com um único par de fones de ouvidos – o vídeo I Am America, de Jonas Mekas.

Como I Am America parece indisponível mesmo na internet (as poucas informações encontradas fazem referência justamente à exposição da BLT, e não há menção ao filme no site oficial do artista), uma rápida descrição se faz necessária. Tendo cerca de cinco minutos de duração, I Am America é composto por apenas três planos – sendo que o terceiro é uma repetição idêntica do primeiro. Nele, Jonas Mekas filma, em cores, uma velha foto preto e branca de um garoto vestido em trajes do começo do século XX. Será o próprio Mekas? Na banda sonora, o diretor toca seu acordeão – instrumento que ouvimos em diversos dos seus filmes – e canta, duas vezes seguidas, o verso:

“Listen, my child / It was a horrible story / It was a horrible story / which I’ll never forget”

Corte seco para um plano tremido que começa no rosto envelhecido de Jonas Mekas, como se checando se a luz do REC estaria realmente acesa. Ele faz rapidamente um chicote com a câmera e, do telhado do prédio em que morava, no Soho, enquadra a História: as torres gêmeas do World Trade Center jorrando nuvens de fumaça, após serem atingidas pelos dois aviões que estraçalharam o céu de brigadeiro que cobria a América em 11 de Setembro de 2001. Mekas filma os prédios encobertos por fumaça, faz um zoom in que adentra a nuvem de poeira e, em poucos minutos, as torres desabam. O plano continua por um tempo, filmando os restos do arranha-céu que flutuam no ar. Corte para a mesma foto do começo do filme, com o mesmo verso, a mesma voz tremulada pela idade e o sempre presente sotaque lituano de Mekas, levemente abrandado pelo tempo. 
  
Visto fora de contexto, I Am America talvez não pareça muito diferente de vários outros registros dos acontecimentos daquele dia, como tantos que vimos e continuamos vendo na televisão. O próprio Mekas usou outros trechos desse material na instalação The Destruction Quartet, e em um dos vídeos do 365 Day Project, projeto pelo qual Mekas lançou 365 vídeos em um ano. A diferença, no caso, está na história do olhar. Cerca de 47 anos antes, Jonas Mekas tinha os olhos cravados no viewfinder de uma outra câmera, que enquadrava uma outra torre. Em uma entrevista realizada em fevereiro de 2000, publicada no livro Jonas Mekas: Just Like a Shadow, Jerome Sans pergunta a Mekas:

"What did Andy Warhol think about your films?

He liked especially Walden, and saw it several times. He liked The Brig also. It was after seeing The Brig, and learning about my filming techniques which were very simple, that he decided to begin to film with sound. What I did, I used a newsreel style Auricon camera that records image and sound on the same strip of film, simultaneously. He liked that idea and began filming with an Auricon camera. That´s how he shot Empire, I was the cameraman. There was a funny discussion: should we film Empire State Building sound or silent... We decided to film it silent"
.

Road to NowhereEmpire é composto de planos contínuos (interrompidos apenas pelas trocas de rolo 16mm) e fixos do Empire State Building, totalizando pouco mais de oito horas de projeção. A imutabilidade absoluta do prédio é contrastada à leve fluidez das luzes – no prédio, em seu entorno, no lugar onde está a câmera (como hoje sabemos, um escritório de um prédio próximo) e na variação de exposição do filme à luz natural – entre as 8:06 da noite e as 2:42 da manhã dos dias 25 e 26 de Julho de 1964. Embora tenha permanecido como um filme silencioso, existia a idéia de manter na banda sonora as conversas da equipe de filmagem enquanto a câmera rodava. Em I Am America não há exatamente uma conversa, mas apenas o som de uma mulher que chora e grita diante da queda das torres, ficando sempre fora de quadro. Sua voz aos poucos se mistura com o sufocante barulho das sirenes, que parecem se multiplicar instantaneamente pelas ruas da cidade com a queda das torres. 

A relação entre os dois filmes dá uma idéia bastante precisa da presença de Jonas Mekas na produção artística do século XX. Os dois filmes se conectam incidentalmente por uma questão essencial para o diretor: o registro da passagem do tempo. Esse registro se dá não só em um processo de auto-fabulação memorialística possibilitado pelo hábito de Mekas de montar seus filmes vários anos após as filmagens – explicitando a montagem como um comentário sobre o material documental captado – mas também pelo que há, de fato, de documental em ambos os materiais.  Como princípio, há o sentido intrínseco na própria escolha do Empire State Building – prédio que tomava emprestado o apelido do Estado de Nova York para afirmar uma mentalidade e um posicionamento político no mundo. Road to NowhereO World Trade Center, ao contrário, rivalizaria esta idéia tanto em seu título – trocando o “estado” pelo “mundo”, mas solidificando as negociações e as trocas como um novo imperialismo, um novo centro – quanto em sua construção: o prédio mais alto de Nova York passavam a ser dois, idênticos, gêmeos ou, em termos benjaminianos que agradariam a Warhol, reproduzidos; apenas parte de um conjunto de sete prédios. Enquanto Andy Warhol filmava justamente a permanência absoluta deste império – que, em seu caso, se dava sempre no terreno das imagens – e afirmava a unicidade pela reprodução (não só seus famosos retratos, mas também a essência por trás dos “15 minutos de fama” que ele detectava como tendência contemporânea), Jonas Mekas filma a ruína desta nova ordem imperial, com a vaporização completa de sua imponência. Não há mais um ou dois que, mesmo idênticos, permaneceriam únicos; há apenas uma nuvem de fumaça em constante transformação.

Essa mudança, porém, não é de cunho somente político. Pois enquanto Warhol transformava o paradigma artístico fixando o banal aparente no panteão imutável dos ícones, Mekas filma exatamente o contrário: a dissolução dos ícones em uma muito contemporânea indistinção, onde tudo que é sólido está condenado à evaporação, e a própria idéia de obra de arte (central para os “quadros filmados” de Warhol) já não ecoa os mesmos sentidos. Os filmes de Warhol são, em grande medida, pinturas filmadas – no sentido de, mesmo em movimento e em transformação interna constante na imagem e no som (My Hustler, Beauty #2), responderem à ordem de fixidez das pinturas penduradas nos museus; Warhol era, mesmo em sua posição crítica, um artista que trabalhava pela permanência da pintura, enquanto Mekas, vide o próprio The Brig, era o sujeito já ligado às performances, aos happenings e a uma volatilidade que chega ao paroxismo no já citado 365 Day Project. 

Road to NowhereDa mesma maneira, os filmes, em si, se tornam registros materiais desta passagem do tempo: enquanto Empire foi filmado em 16mm, I Am America é feito com uma handycam de vídeo – formato adotado por Mekas nos últimos anos, substituindo o 8mm que era predominante em seu início de carreira. Embora o 16mm, como toda película e toda torre, não seja eterno, há ainda uma relação material e concreta inexistente nos impulsos eletrônicos do vídeo – onde uma imagem, a rigor, sequer existe. Essa tensão, com todo o simbolismo e a possibilidade de reflexão que ela abre, está condensada no primeiro e no último plano de I Am America: uma fotografia, desgastada materialmente por dentro e por fora pela passagem do tempo, feita imaterial pela filmagem em vídeo. É um processo de empilhamento de camadas que confronta e inverte a tônica mediadora da pop art, sintetizada pelo artista e pensador Dan Graham, no texto The End of Liberalism (1981):

“Pop artists employed this distancing technique to repress the emotional intensity of the commercial images they reappropriated, and to reduce the art object to just another product or advertising icon. Pop art is a representation of a representation; it represents the media’s depiction of our desires, which is already a once-removed relation to ‘reality’ directly. Pop’s ‘new realism’ does not pretend to represent ‘reality’ directly”.

Jonas Mekas é um artista tão peculiar por, já naquele momento, tomar esse distanciamento da pop art como lição e percebê-lo como impossível. Embora ele não descarte a “representação da representação” (uma câmera que filma uma foto) como manifestação em si que não pretende revelar diretamente a “realidade”, ele subverte a frieza deste processo confrontando-o a uma memória que é sempre afetiva. Se a pop art esvaziava a intensidade emocional das imagens reapropriadas para subverter seu sentido original (como evidencia uma citação de Roy Lichtenstein no mesmo The End of Liberalism: “The heroes depicted in comic books are fascist types, but I don’t take them seriously in these paitings – maybe there is a point in not taking them seriously, it’s a political point”), Mekas filmas como se não houvesse mais esvaziamento possível. Quando filma o mundo, filma a si mesmo, substituindo o sentido original das imagens (o mesmo retirado pela pop art) por um sentido pessoal de quem se relaciona com elas. O cinema de Mekas vive dessa ambiguidade, condensada brilhantemente na citação do diretor que acompanhava I Am America na montagem da BLT: “I don’t know what I am, all I know is I’m not american”.

Mas há um outro sentido especial na relação desses dois filmes que, hoje, não só situa Jonas Mekas em um lugar raro no panorama artístico mundial como também ajuda a compreender a posição de onde ele olha para o mundo: aos 89 anos, Mekas tem, em seu trabalho, um testemunho de rara integridade das transformações artísticas do século XX e XXI. Seja por sua relação pró-ativa com o “novo” e com as constantes mudanças de tecnologia, ou pela maneira como seus filmes serviam como aglutinadores de uma explícita empatia artística – algo determinante em meio a toda a potência anônima de Walden, na presença de cenas com Carl Theodore Dreyer, Hans Richter, Stan Brakhage ou com o Velvet Underground, e ainda mais óbvio em suas filmagens com John Lennon e Yoko Ono – a obra de Mekas, sempre em devir, se consolida como um documento artístico sobre a inevitabilidade das transformações da arte diante da história e do incessante trote do tempo. Esse tempo, dos planos curtíssimos dos primeiros filmes à possibilidade da duração no trabalho com o vídeo, é destacado por Mekas em sua natureza paradoxal, em momentos que, sem angústia ou atropelo, parecem infinitos em sua natureza fugidia.

Setembro de 2011

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