Eu Sou a Lenda (I Am Legend),
de Francis Lawrence (EUA, 2007)
por Paulo Santos Lima

Um ator querendo ser Ator num filme querendo ser Filme

Os primeiros dez minutos de Eu Sou a Lenda fazem um resumo formidável sobre o que é esse filme. A primeira tomada mostra um noticiário sobre uma experiência acerca a cura do câncer a partir do manejo com vírus. Na tomada seguinte, com uma legenda informando sobre um salto no tempo diegético, temos Will Smith correndo, tresloucado, num veloz carro por ruas desertas; cena mostrada com uma câmera ágil pelas vias, tudo isso nos permitindo perceber uma cidade arruinada. É um punhado de cenas que duram pouco mais de cinco minutos e que são imagens-síntese deste longa de Francis Lawrence.

O que é positivo, aqui, nessa concisão extrema, é a felicidade pela coerência das opções estéticas do longa. Nesses minutos cruciais, sabemos, por exemplo, que algo quase dizimou a vida humana na Terra (quase porque há Will Smith). Logo veremos que há ameaças brutais naquele espaço, e escassez de comida, porque Will Smith tenta loucamente matar uns cangurus esquisitos que correm por entre carros destroçados, vielas, lixos, ruínas. O som é puramente intradiegético, aqui, e pode-se dizer que não propriamente em silêncio absoluto, porque há o ruído potente do carro e também (mais uma vez) Will Smith e sua voz – e ele fala à beça, demais para alguém que está sozinho e cujo único companheiro é um cão. Saberemos ainda que há alguma ameaça pairando por lá, sobretudo logo depois, quando Will Smith entra em sua casa, que ele transformou num verdadeiro “bunker”. Faremos, ainda, graças a essa introdução bastante bacana que bem dosa as informações, uma ponte com Mad Max 2 (graças ao primeiro plano de Will Smith, frontal, no carro, com o cão no banco de passageiro) e, num laço mais genético ao filme, A Última Esperança na Terra. Não à toa: Charlton Heston estava para esse filme de 1971 como Will Smith está para este. Engraçado que ser “a última esperança da Terra” era um apelo para Heston, um ator de desenho marcante na tela, mas já em declínio naquela década.

Will Smith, mais arrogante, grita que é a lenda, o que soa bastante anacrônico, porque hoje, no starsystem americano, a volatilidade mantém os astros numa gangorra infernal e que muitas vezes cai de vez no chão. Talvez Jack Nicholson seja algo lendário, mas entre os mais jovens, nem Tom Cruise, o único astro no sentido clássico do termo, é uma lenda em si. Tampouco o seleto time que vem atrás dele, como George Clooney, Brad Pitt, Julia Roberts. A idéia de fazer reverência a Smith, de fazer dele um ator com “A” maiúsculo, é bestial, grosseira, e se faz uma marca indelével no filme ao passo que o sacrifica bastante. A câmera sempre volta-se a ele, e, na ausência de outros personagens (a aparição de Alice Braga é esdrúxula, e serve como peça para o happy end e heroificação do protagonista — ou seja, temos uma serviçal terceiromundista prestando-se como catapulta de legitimação ao seu senhor desenvolvido), só resta Smith. Um filme de ator? Sim e não, pois este é um filme de trama “cheia de sacadinhas” e também querendo fazer arte por meio da linha-de-montagem industrial.

Arte que faz bem mal, diga-se. Que começa muito bem nos seus primeiros 15 minutos para depois avançar gradativamente até seu projeto real, que é ser uma “obra de qualidade” - filme “autoral” com selo de garantia do ator cintilante. Aí, à parte a presença do ator, há outras opções estilísticas bastante desandadas, como o uso da trilha incidental (maior marca do longa, ao lado de... Will Smith, claro). O modo e utilização do som nem é uma opção ousada, já que perfeitamente casado com o que se narrando (a Terra esvaziada de humanos, o fim do mundo etc).

Temos, assim, um típico naturalismo de cinema industrial, que coaduna o que conta com o que mostra, sem qualquer curto-circuito entre a imagem e o enunciado. Isso, claro, não é uma falha, longe disso, mas salienta três problemas gravíssimos: quando Will Smith abre a boca, quando sonha (sonha ou o filme faz flashback, sabe-se lá, para elucidar o que no princípio é meio misterioso) e, o pior de tudo, quando entra uma trilha incidental nos momentos em que o drama do personagem torna-se abissal; música esta codificando o momento sensível, de dor do personagem e dramaticidade da história. Imaginemos, assim, um filme “de silêncios, vazios e ausências” cujas imagens em tempo presente não são propriamente omissas de informações que estão além das imagens em si, pois contaminadas com a presença ostensiva da voz de seu ator falando sobre tudo, conversando até com poste, flashbacks alimentando o deserto informativo que seriam essas imagens e uma música descrente com o potencial da imagem.

Visto com olhar mais panorâmico, esse longa começa muito sutil para, paulatinamente, ir chegando aonde quer, e isso está claro comparando-se os tais 15 minutos iluminados e o final ignóbil, com o personagem-ferramenta de Alice Braga chegando, literalmente, ao final feliz (numa colônia de humanos não infectados pelo vírus-zumbi), com a chave da cura da peste descoberta pelo herói que se sacrificou pela humanidade. Um final que legenda o personagem, que nos conta telegraficamente sobre ele ter se tornado uma lenda. De fato, Will Smith, aqui, é um messias, senão a última, a única esperança da Terra.

Poderia ser dito, por outro lado, que, à parte a mensagem boçal (crítica que seria sobremaneira conteudística), esses nós no tecido estilístico de Eu Sou a Lenda sejam bacanas na medida em que fogem de uma certa coerência patente no cinema industrial. Mas o que temos é um grande problema prisional: prisional ao diálogo distante, vampirização anêmica com um clássico perdido dos anos 70, ao de fortalecer seu ator como imagem hercúlea (note como a câmera usa ângulos inusitados para o seu intérprete) e, resultado disso tudo, ao de se fazer um filme tão “diferenciado” quanto “especializado”. Filme preso à legitimação de si próprio. De si próprio como cinema, como filme com “f” maiúsculo. Filme querendo ser “Filme”, ou “O Filme”.

Janeiro de 2008

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