Incêndios (Incendies),
de Denis Villeneuve (Canadá/França, 2010)
por Fabian Cantieri
Dor
e redenção
Incêndios abre com Radiohead ouvido
sobre a imagem de certas crianças num vilarejo visivelmente
pobre (é isso que as moscas indicam), tendo suas cabeças
raspadas. Um dos meninos, que obviamente terá destaque
na obra, tem uma marca no pé e olha para a câmera.
Um olhar, como a cena, vazio, não fosse a música-muleta
ajudando com sua significação - "você
e que exército irão me derrubar?". Cada um
tem sua guerra a travar e não adianta vir pra cima; a defesa
se aprende cedo com o sofrimento. E este faz parte da vida. E
sofrimento certamente é o que não falta a Incêndios,
de Denis Villeneuve. Nawal Marwan (Lubna Azabal) perde o marido,
morto pela própria família, enquanto grávida
do filho (aquele da marca no pé), que lhe tiram para que
possa fugir para casa do tio. A guerra, pano de fundo e cenário-motor
das ações das personagens, se agrava. Preocupada,
Nawal vai em busca do filho e, no caminho, o estopim centrípeto:
o ônibus é metralhado por facções terroristas
do Partido Nacionalista que apoiavam as milícias da direita
cristã.
A partir daí a tensão aumenta. Adicionando uma mãe
e filha (paralelo idílico de Nawal) como únicos
sobreviventes do primeiro ataque ao ônibus, muito parece
que a intenção é exponencializar tensão
a uma cena já altamente dramática. No momento da
salvação, quando o insight de se mostrar
cristã abre uma brecha para tirá-la dali, ela resolve
salvar também a criança, afinal, mais vale uma garota
órfã viva do que as duas juntas no céu, seja
de qual religião for. Aparentemente, não há
sofrimento existente que corrompa o caráter benevolente
de nossa protagonista. Teríamos então uma santa
na terra, no que parece ser um processo de canonização
via uma cruel expurgação? Nem tanto. Mas a morte
muda da menininha logo em seguida parece querer testar os limites
de Nawal e com o fim de uma vida, chega-se ao fim dos limites.
Mas
a morte parece não interessar tanto assim a Denis Villeneuve.
Apenas suas conseqüências. Existe o close na menininha
sendo afastada da mãe, sabendo que ela irá morrer.
Não há contra-planos. Depois de tanto chorar, os
bandidos tiram a garota do colo da falsa mãe e, obviamente,
ela corre para a verdadeira mãe - morre no meio do caminho
com um tiro na nuca que acaba com o silêncio estilizado
da cena. Estilo que está menos preocupado em feições
estéticas inovadoras e mais para suas conseqüências
na urdidura da narrativa. Afinal, é a menininha quem costura
todo o fio dramático - ela serve como projeção
do filho de Nawal, onde tudo se materializa e se perde à
sua frente, estimulando o ardor da vingança. Não
mais é possível ficar inerte perante tanto vandalismo.
É vendeta que arrefece toda uma crença na palavra:
os livros não mais levariam à paz, os preceitos
de seu tio eram desmentidos pela vida; a santa finalmente perde
sua vontade por auréolas. A resposta só pode se
encontrar na morte do grande culpado.
Depois do bloco-sequência do incêndio, corta para
Jeanne Marwan (Mélissa Désormeaux-Poulin), filha
de Nawal, também num ônibus na mesma posição,
mesmo enquadramento, ouvindo "You and Whose Army?"(ela
vai enfrentar sua própria guerra), procurando a mãe,
anos depois, naquele mesmo terreno da fatalidade. Ao voltar para
a narrativa da mãe, repete-se pela primeira vez o último
plano do bloco-sequência anterior e depois corta para ela
andando, olhando para a clareira de um lado e a destruição
de outro. O que poderia soar sutil, se torna quase um efeito Kuleshov:
luz arrebatadora num lado do plano - corta - região
árida destruída, evidenciada pela fumaça,
de outro. A metáfora está posta: "Deus constrói
um mundo tão incrível para o homem destruí-lo
tão insensatamente". A dor não como condição
humana, como parecia, mas uma conseqüência quase natural
vinda do próprio homem. Um soco incriminatório que
posta em xeque (por um formalismo um tanto quanto prosaico, mas
posta) nossas andanças pelo mundo. Ações
generalizantes (afinal, nesse contexto quem é o homem?
Qualquer um envolvido com a guerra? Qualquer um que padece da
placenta uterina de um mãe sem sorte?) que carecem de uma
reação por parte do autor.
Para
resposta, seu final tenta prestar a redenção da
protagonista (seria a volta da crença no homem?). Ela perdoa
até o diabo, seu filho, afinal ela o "privou de toda
a doçura do mundo" e, nesse universo desenhado, capetas
só se tornam vis pois têm uma história sofrida
por trás. Aqui o fator causa/conseqüência é
indireto - agruras da guerra - mas também direto: ela o
soltou no mundo. O mundo é cão, inevitavelmente.
Morde a muitos, mas no final, bem no final, as marcas devem ser
absolvidas. O importante é perdoar. Mensagem bonita travestida
por uma estória cheia de reviravoltas. Nesse triangulo
cristão, quem fica sem solução é o
filho. Não há olhar (de câmera) algum que
saiba lidar com ele. É um problema que nem mesmo o Deus
daquele mundo fictício parece conseguir resolver; arderá
de culpa nas chamas infernais da terra. A ex-santa justiceira
não mitificada consegue, porém, recuperar o dom
da graça e anistiar o indesculpável. Alguma lembrança
clara e direta da Bíblia? A catequese epistolar de Denis
Villeneuve parece bem ortodoxa: não jogue pedras em Nawal,
pois até o ato mais insano e cruel ela foi capaz de perdoar.
Se ela perdoou, também merece ser perdoada; tem direito
a morrer contemplando de frente o céu da qual esteve tão
perto tantas vezes. Perdoe o sofrimento recebido. Perdoe o filme.
Maio de 2011
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