A Origem (Inception), de Christopher Nolan (EUA, 2010)
por Rodrigo de Oliveira

Salt
O estranho, esse nosso conhecido

Plano recorrente de A Origem: o registro, detalhado em câmera lenta, de corpos inanimados (eles estão dormindo) se submetendo às intempéries de um ambiente tenso e vibrante do qual são apenas objetos de cena mortos em sua aparência. Num filme supostamente intrincado em toda sua armação de mistério e desvendamento, é curioso perceber que não há nunca um desejo real de investigação, um corpo-a-corpo direto com o objeto de suspense, e a dimensão mais evidente disto reside nas seqüências de ação, todas elas desinteressadas pelo que há de mais básico na dinâmica desses eventos. Vários e longos minutos da trama são perdidos na explicação da mecânica do trabalho de Dom Cobb e sua equipe de ladrões de sonhos alheios, mas a mecânica mais simples do gesto, do corpo, do movimento, é negligenciada por algo que só podemos entender como excesso de permissividade – é o paroxismo da “montagem permitida”, do corte que se impõe à imagem como num castigo quando ela se apresenta assim tão complexa e difícil de domar.

Uma coisa que sabemos desde Batman Begins e O Cavaleiro das Trevas é que a filiação real de Nolan está para o cinema de ação assim como Rob Marshall e seu Chicago estão para o musical: eles preferem não ver. A Origem mostra um compêndio de situações absolutamente típicas no universo do blockbuster de verão americano, algumas delas transportadas literalmente de outros filmes, e com todas elas mantém a mesma disposição do prazer pela ignorância. Mas retiremos de A Origem seu caráter de filme de ação minimamente articulado (e não somos nós que o fazemos: foram os bons filmes de James Bond e suas montanhas Saltcheias de neve e bases inimigas, ou a perseguição de carros na chuva de Os Donos da Noite, ou a intrusão de heróis do norte em ambientes subdesenvolvidos sob guerra, como em Rambo). Restaria a inteligência e a originalidade da narrativa, se acreditarmos nas duas noções da campanha de marketing e da repercussão entusiasmada pelos fóruns de Internet, mas que não resistem à projeção do filme. É o fenômeno da geração que viu em Lost um exemplo de televisão de vanguarda: filme e série são, ao contrário, velhíssimos, e o tempo só os tornou mais desleixados (em A Origem chega a impressionar a maneira como rigorosamente todos os personagens que não sejam interpretados por Leonardo DiCaprio são puro fantoche dramático, exclusivamente funcionais, personalidades identificáveis pela profissão – a arquiteta, o químico, o mímico; ou ainda como o que o filme entende por “saltar de um sonho a outro” não significa nada para além da montagem paralela cumulativa que Edwin S. Porter fazia em seus filmes do começo do século XX, só que com trens no lugar de mentes).

Mais importante que tudo: ao avançar por experiências ditas “inéditas”, ao criar pequenos laboratórios narrativos onde aparentemente estas peças nunca haviam sido dispostas desta maneira antes, Lost e A Origem são incapazes de dizer qualquer coisa minimamente articulada sobre que tipo de homem tirarão desse experimento – se agora, tendo que lidar com bairros parisienses que se dobram sobre a cabeça ou com ilhas que mudam de lugar, estes sujeitos passarão a um novo estágio de consciência, de comportamento. Novamente a ignorância: gosta-se puramente do não saber, do estranho que nunca é incomum, porque tudo já foi visto em roupagens menos berrantes, porque a compreensão real desses universos alternativos criados é impossível – eles não são universos exatamente, são caixas de sapato.

A Origem, mais seriamente ainda, se coloca nessa estranheza a partir da experiência mais partilhável possível que é o sonho e as medidas do inconsciente. É um filme sobre a criação de narrativas, a trama de um grupo de pessoas que cria um espaço-tempo fictício de tal modo introjetado pelo espectador-alvo (diríamos “vítima”) que é capaz até de extrair dele pensamentos indesejados ou implantar ali idéias novas. É um poder incrível este, e por isso mesmo sério demais para se pôr em marcha por um capricho capitalista qualquer – venha ele de um engenheiro de cinema (difícil falar em cineasta) ou de um ricaço japonês, ambos interessados em conquistar o mundo primeiro e descobrir o que fazer com ele depois. SaltNeste território de sonhos fabricados e memórias subtraídas não há ruído, nem mesmo quando há erro de cálculo. A Origem consegue banalizar a jornada de um trem desgovernado pelo meio de uma avenida ou a experiência de corredores giratórios sob gravidade zero, justamente porque não há nada ali que soe como ameaça – todos esses elementos estranhos aparecem em cena com o convite para a festa em mãos, estão sendo esperados para fazerem sua pequena exibição e então saírem sem deixar nenhuma marca. A noção de Nolan sobre a mente humana é limpa e controlável demais para se sobressaltar, para acusar golpes, para se confrontar com o desconhecido real, e não apenas com alguns códigos de impressão programados. Vemos tiros e explosões, mas tudo isso se passa no sonho, não é mais que sugestão, jogo de sombras móveis que se atingem sem nunca se ferir.

Risco mesmo está na idéia de que quando não se consegue sair do sonho alheio, a condenação é permanecer num limbo mental que “frita seu cérebro como a um ovo”. Representar o limbo, no entanto, é algo que Nolan se recusa a fazer, e não apenas porque seus personagens nunca são imprudentes demais a ponto de flertar com ele (quando um deles comete essa ousadia, não merece mais que o mergulho dissimulado num abismo e uma maquiagem envelhecida). Esta é uma conta a ser debitada em Dom Cobb, o coitado com uma dívida familiar que víramos DiCaprio cumprir tão melhor em A Ilha do Medo. Cobb é atormentado por uma imagem do passado, um pouco como o viajante do tempo de La Jetée – aliás, é bastante curiosa a semelhança entre a máquina que Chris Marker usava para acessar a memória lá e o instrumento que Nolan utiliza aqui. Mas o problema em La Jetée era de interpretação e repertório: aquele homem, naquela altura de sua vida, era incapaz de entender que aquela imagem obssessiva era, na verdade, uma imagem sua, de sua própria morte. Ele sabia a imagem de cor, mas a desconhecia completamente. Cobb tem uma imagem ainda mais deturpada, pois ela nem se dá a ver por inteiro. Seus filhos, de costas, estão brincando num jardim ensolarado, mas eles nunca se viram, nunca se vê seus rostos. A loucura está justamente no intervalo, mas ele é negado como espaço real de tormento, justamente porque tanto nós quanto Cobb sabemos exatamente o que esperar dela: sorrisos lindos, dourados, recebendo o pai na volta de seu exílio involuntário. A Origem é um filme sem intervalo e, portanto, sem suspensão. “Prefiro não ver porque já vi tudo, porque já sei o que está do lado de lá e quanto a imagem não resta nenhuma ambiguidade, gosto da ignorância só quando ela não ameaça esse estado de onisciência, gosto da esquisitice só quando ela não significa delírio e confusão”. O único perigo real de A Origem é a loucura, mas dela o filme foge como o diabo da cruz.

Setembro de 2010

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