Incontrolável (Unstoppable), de Tony Scott (EUA, 2010)
por Filipe Furtado

IncontrolávelO temperamento clássico na era da reprodução digital

Quando se utiliza a expressão "cinema clássico", costuma se tratar de um atalho para dois sentidos muito distantes: um suspiro por um ideal de unidade de forma há muito perdido, ou um elogio um tanto condescendente para cinema narrativo, que por toda sua graça vai seguir sempre um degrau evolutivo abaixo do tal "cinema moderno". Nenhuma dessas descrições associariam Tony Scott a idéia de clássico, já que nenhum cineasta americano em atividade tem prazer tão grande em atacar a unidade da imagem. Se aceitarmos, porém, que  o clássico no cinema se apresenta menos como uma série de procedimentos estéticos e é mais uma questão de temperamento, poucos cineastas em atividade caberiam na definição tão perfeitamente quanto Scott.

IncontrolávelAssistindo a Incontrolável, encontramos o gosto por contar uma boa história ancorada por duas atuações de estrelas coadjuvadas por um sem número de character actors; um bom olho para o especifico local (algo muito subestimado: Incontrolável é um filme passado no interior de Pennsylvania, e não em qualquer outro lugar dos EUA; pode não ser realista, mas o esforço de ser especifico e autentico está na tela, algo que dificilmente veríamos em Christopher Nolan ou Michael Bay); e o reconhecimento de que, para conseguir o filme que quer, algumas concessões precisam ser feitas. Incontrolável é de uma grande simplicidade de propósito: há um trem desgovernado, há dois homens dispostos a se arriscar para pará-lo e há a tensão crescente da missão deles. De certa forma, é o filme mais básico e controlado que Scott realizou na última década, e seus prazeres são derivados da eficiência com que ele amplifica sua premissa de gênero. Os desvios que Tony Scott insere em seu filme lhe complementam com uma personalidade própria, mas, independente deles, Incontrolável seria um belo filme pela maneira como sustenta seu suspense ao longo da sua duração. A última hora do filme em particular tem um trabalho notável de crescimento e redução de tensão que é dificílimo de sustentar, e por si só justifica que o filme mereça uma atenção especial.

Scott está longe de ser um cineasta preocupado com bom gosto e/ou sua reputação (pensemos nas inserções de merchandising de Hooters aqui), mas ele é muito habilidoso naquilo que se propõe e provavelmente nunca tanto quanto neste Incontrolável, seu filme mais bem realizado - se não tão interessante quanto a dupla Domino/Dèja Vù. Toda esta eficácia vai contra a idéia comum de que um bom filme de gênero tenha a precisão e controle que encontramos nos planos de um Eastwood ou de um Carpenter. Incontrolável é menos excessivo esteticamente que outros filmes de Scott, mas seus planos seguem sobrecarregados de tinturas para bem além do que esta idéia padrão pressupõe. As imagens de Incontrolável são sujas e empobrecidas; se Tony Scott exibe um temperamento clássico, ele chega a seus planos partindo do principio de que uma imagem equilibrada é impossível. Estamos longe de Hitchcock ou mesmo de um bom thriller relativamente recente como Velocidade Máxima: as imagens de Incontrolável pertencem a outro estágio, são realizadas partindo do pressuposto de que já é impossível ver de que tudo chega ao nosso olhar distorcido e mediado da pior maneira possível. Não à toa, a presença do noticiário de televisão é predominante ao longo de Incontrolável. Afinal, não há imagem mais pobre e degradada do que a do noticiário 24 horas, especialmente quando vem acompanhada da cobertura espetacular de um fait divers como um trem desgovernado. A imagem é reduzida, subexplicada, seu significado perdido e massacrado pela informação de forma muito pior do que qualquer filtro e corte rápido seria capaz.

IncontrolávelA cobertura televisiva domina Incontrolável, e o filme em mais de uma oportunidade chega a parar para que um resumo da ação - muito mais pobre, desencontrado e desinteressante do que ela em si - seja apresentado. Numa das grandes sacadas de Scott, a maior seqüência de ação do filme - a das conexões dos trens - nos é apresentada majoritariamente pelas câmeras de TV.  É uma ação simples - Chris Pine tem que conectar dois trens em movimento - cuja visão é prejudicada pela alta quantidade de faíscas digitais que o cineasta acrescenta, e sobretudo por um olhar nebuloso que tudo e nada vê. O noticiário tem toda a ação e ao mesmo tempo é incapaz de processá-la. Um talento menor diante de tal conceito arruinaria a seqüência para provar seu ponto. Mas não importa o quão poluída sua imagem se torne, o temperamento de Scott jamais permitiria isso. Em Incontrolável, esta imagem mediada e nebulosa avança o suspense do momento. O gênio de Scott reside justamente em observar e usar esta inoperância de olhar em favor do seu thriller.

Janeiro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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