ensaios
In Public
Ficções do interlúdio
por Juliano Gomes

“(a arte) é política antes de mais nada pela maneira como configura um senso comum espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada, formas de reunião ou de solidão. Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta, e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade política.” 
Política da Arte, Jacques Rancière

Muito PrazerComo todo grande artífice das matérias do mundo, Jia Zhang-ke é o que se pode chamar de um cineasta “teórico”. Não porque desfila teses, ou povoa sua obra com grandes discursos ou teorias. Mas porque, a partir de uma base estritamente material (e superficial: a tela), o que elucida são justamente as variações desta substância, mais especificamente suas reconfigurações. Junto a seu extraordinário diretor de fotografia Yu Lik-wai, o diretor chinês leva o procedimento do movimento panorâmico da câmera (giro lateral, mantendo-se o eixo fixo) a um ponto tal que não seria exagero atribuir-lhes a fundação de uma fenomenologia muito singular e terrena. Ao lado de Visconti, Ophüls, Antonioni e Warhol, esta dupla de imensos artistas talhou uma espécie particular de arqueologia dos espaços, que são ao mesmo tempo limitação e ilimitação, levando este paradoxo à sua exaustão pela insistência e modulação. O quadro se movimenta lentamente, de um lado para outro, e o que vemos é uma transformação, uma consubstanciação se dar em ato. Jia dinamita os pares: presente e passado, movimento e repouso, duração e interrupção, realismo e fantasia, dramaturgia e coleção, contemplação e ação – tudo isto se coaduna de maneira que estes supostos opostos passam a atuar em vital comunhão, de forma que mantém-se opostos e igualmente atuantes ao mesmo tempo. O cinema de Jia Zhang-ke é a criação deste paradoxal espaço comum de atuação de forças.

Muito PrazerDe início, a aparência de contemplação é rapidamente desfeita: trata-se de uma poética da figura humana. Ela é o guia aqui, a ferramenta de afinação destas metamorfoses. In Public é um momento privilegiado de observação do funcionamento destas operações, pois é um “discurso sobre o método”, um exercício em ação sobre um modo de fazer, que é, na verdade, um modo de estar junto, um modo de partilha. A cada bloco há uma espécie de desafio espaço-temporal que configura uma micro-dramaturgia própria: quando a figura humana vai se mexer? Qual será seu próprio movimento? Está vindo alguém? Alguém vai descer do ônibus? Será que ele vai falar? Será que a janela se abrirá? Jia cria um clima, uma ambiência, um campo de forças, onde nos sintonizamos para receber as vibrações do mundo.

Em trinta minutos de duração, impressiona a facilidade com que se estabelece uma relação sensorial onde o absolutamente prosaico dá mãos ao épico. O tempo aqui é todo o tempo do mundo, é circularidade, é a História da China, do mundo, do Homem, do Cosmos. E é a mais banal anedota numa tarde cheia de pó de um vilarejo chinês. Muito PrazerCada movimento lateral parece ser um dobra que o espaço e o tempo fazem, na medida em que se acumulam os rastros da figura humana, configurando assim essa espécie de memória do espaço. Um cinema acelerador de partículas, que vai constituindo órbitas, fazendo tudo ao seu redor dançar, numa fina articulação de ritmos. In Public se dedica simplesmente à observação “ao vivo” deste processo absolutamente encantatório de fazer a matéria bailar (que culmina nas cenas de dança per se, reafirmando seu caráter autoreferente). A sensibilidade rítmica é marcada desde o primeiro plano, que liga um “exterior”, uma janela, a um interior, uma sala de espera de estação ferroviária. Nela, se pode ver ao fundo uma outra janela, fechada, através da qual se vê, em segundos, um trem passar. Interior e exterior se dissolvem aos nossos olhos, se juntam e se separam. O quadro isola, aponta para si mesmo, enquanto o som amplia, joga pra fora, para o infinito. O jogo está posto. É o compasso desta dança da indefinição que nos embala dali em diante.

Muito PrazerO “público” do título é o comum, o compartilhado, e também é platéia, audiência. Se o mundo é dança, ele também é teatro, e o teatro é uma das estruturas fundadoras desta poética. O diapasão de Jia sublinha as aparições, seus blocos de espaço-tempo, como números de teatro que se acumulam, que têm seu desenho próprio e se equivalem por sua diferença (cada número dita suas próprias regras pelo ritmo de suas matérias) e indiferença (quando o movimento da câmera e dos personagens atinge tal equilíbrio que o a impressão de movimento parece se anular, de forma que a estabilidade desta relação cria este misterioso regime de percepção). A recorrência de cortinas, canções e coreografias é somente a face mais visível deste sublinhar. A contemplação pura está a milhas de distância. Aqui é a multiplicidade de ações e sua orquestração que está em jogo. A musicalidade das cenas é como uma orquestração pop, onde há um centro (a figura humana) e uma construção constante de variações e ressonâncias deste centro. Há sempre uma forma, uma harmonização que tende às sínteses, à moda dos Lumiere; uma concentração dos instantes.

A perfeição formal dos enquadramentos é a face centrípeta deste processo de concentração da forma. Os elementos são organizados de maneira que se conectem, formem um mundo, um conjunto perfeito que, apesar de móvel, parece ser inviolável na medida em que sua composição sempre se mantém. Há um primado da forma na organização do visível que domina o olhar num primeiro instante e que, repentinamente, em silenciosas interrupções, nos joga no mundo, nos deixa sentir a poeira das paredes, isto é, a ação do tempo. Muito PrazerSomos como crianças a aprender a  andar de bicicleta: alguém nos empurra sem que vejamos e, quando tomamos confiança neste andamento, estamos já sós, nessa desesperadora independência rítmica. A partir do momento do estabelecimento de um comum (uma matéria, uma velocidade) segue-se uma dobra, uma avalanche, que é só somente o tilintar da melodia seguinte, a se misturar com essa. Como, por exemplo, depois de uma seqüência onde acompanhamos uma mulher que perde o ônibus, fica indecisa (em relação a seu destino e em relação à presença da câmera), encontra um conhecido, caminha com ele, se despede e entra no ônibus. Ficamos com ele, ele sai de quadro, e a câmera enquadra uma marquise em contra-plongée. Intervenção na observação e observação na intervenção: entre um movimento e outro, o que se junta é a poeira, a cinza, o cinza, que aos poucos se acumula até que tudo se dissolve.

Daí um certo desejo pela desertificação em muitos dos seus filmes: ela é a culminância deste processo que embala seu cinema, o primado do cinza, do interstício, do não-lugar. Mas há sempre uma fênix a se insinuar, num piscar de olhos, num brilho no teto, numa linha da parede. Essa anulação é também o estabelecimento de um novo ritmo onde uma nova melodia se desenhará, e assim indefinidamente. In Public, apesar de sua forma cristalina, é um filme que poderia continuar para sempre, pois parece supor que, se há mundo, há cena possível, pois seu substrato comum é a variação: seja ele o balançar do ônibus ou o gesto de uma criança sem dentes, oscilando entre a deficiência e a graça.

“Em público” somos todos nós. É nosso estado. A composição entre esperas e ações nos coloca numa espécie de espelhamento com as cenas: estamos na mesma, esperando o que o futuro nos oferece, isto é: qual é o próximo número? Há um espelhamento notável (ressaltando a herança warholiana) que se constitui no avesso indissociável desta operação de generalização do espetáculo. Muito PrazerSe o mundo é tornado teatro, ele também é platéia (pois esse é seu substrato). E os espectadores são justamente a cena, a encenar a ação primeira, a passagem do tempo nos corpos, e o aguardar do momento seguinte. O trabalho da morte, enfim, da vida. O fechar das cortinas que termina o filme é a presença deste vazio que, como tal, tende a matéria. Parece grávido de presença, tanto do último corpo que por ali passou, como do que vem, pois já o sentimos no mínimo balançar dos tecidos, que cuidadosamente nos é apresentado por uma leve dilatação do tempo do plano em relação à ação humana. Contemplação é também a concentração do espírito nas coisas divinas. E decantar é celebrar e filtrar o mundo, ao mesmo tempo. A química precisa entre estes processos é o que coloca Jia Zhang-ke como um artista incontornável deste século.

Agosto de 2012

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