Inquietos (Restless),
de Gus Van Sant (EUA, 2011)
por Fábio Andrade
Da
imortalidade
“You get what anybody gets - you get a lifetime.” -
Neil Gaiman, The Sandman
Um
dos fenômenos mais marcantes da cultura recente, no qual
o cinema tem papel chave, é a reabilitação
artística e cultural dos super-heróis. Se artistas
como Roy Lichtenstein foram aos arquétipos dos super-heróis
para descontextualizá-los e, com isso, inverter o seu sentido,
deslocando seu heroísmo para a pura banalidade da expressão
estética, no final da década de 80 começa
uma campanha cada vez mais agressiva da indústria do cinema
para retomar essas figuras, por vezes com o sentido puramente
reacionário que lhes era original (que a própria
cultura dos quadrinhos tratou de subverter em sua maturidade),
por outras deslocando suas potências para diferentes formas
de reação. Dos Batman de Tim Burton à
avalanche de franquias recentes, passando por Corpo Fechado,
Os Incríveis, desvios nada industriais como A
Alegria, e todo um filão de adaptação
de quadrinhos, os super-heróis moribundos saem lentamente
dos pântanos da cultura e retomam um espaço privilegiado
cuja legitimação não deixa de trazer contra-indicações
que, pela ironia ou ingenuidade, precisam contar com a mea-culpa
dos diretores mais inteligentes para chegarem a um Ratatouille.
Gus
Van Sant, a despeito da improbabilidade da afirmação,
é um diretor de filmes de super-heróis. Mas o é
não exatamente pelo heroísmo individual à
velha Hollywood de seus filmes mais convencionais, como Gênio
Indomável, Encontrando Forrester e Milk,
e sim por um tratamento de dramaturgia e da presença das
personagens
em cena que entoa as saturações distorcidas de Lichtenstein.
Ao menos desde Gerry, Gus Van Sant vem criando um universo
povoado por pequenos heróis cotidianos, seja pelo polvilhamento
da cena com brasões e uniformes de absoluta iconicidade
(a estrela no peito e a camisa na cabeça em Gerry
&ndash personagens que, não à toa, viram videogame
em Elefante; o touro sobre fundo amarelo e todas as outras
inesquecíveis camisas de Elefante; o boné
para trás e o skate embaixo do braço em Paranoid
Park; ); por um tratamento muitas vezes arquetípico
das personagens e de suas trajetórias (os nomes e caminhadas
individuais de Elefante; a causalidade retrobiográfica
em Milk, personagem que já nasce com nome de super-herói);
situações que parecem demandar poderes sobrenaturais
(o salto da pedra em
Gerry; os skatistas voadores de Paranoid Park
e de seu episódio em 8, filme curto em que os
vôos são confrontados a estatísticas de morte;
o rastejar torpe de Last Days); mas,
principalmente, a sensação de personagens que vivem
vidas duplas, com um lado oficial que convive com uma identidade
secreta, algo já presente
em Elefante, intensificado em Paranoid Park,
e feito central na aventura nobre e trágica do herói
em Milk. A diferença dos filmes de Gus Van Sant
para um Superman está justamente em assumir o
salto de James Joyce dos heróis da Odisséia
para os homens comuns de Ulysses como uma fissura intransponível.
Inquietos, nesse sentido, não é tão
diferente assim dos filmes mais recentes de Gus Van Sant. Novamente,
temos aqui um herói maldito de identidade absolutamente
marcada, como uma mistura de Rimbaud com Nosferatu, com os braços
rígidos pendendo dos ombros feito cobras mortas em uma
árvore. Ele é, ainda, aquele que sobreviveu à
morte, que esteve do outro lado e voltou para contar. E, como
fábula, não chega a ser surpreendente que toda a
suposta morbidez de Inquietos seja apenas entrecortada
por raros rostos de jovens mortos, e nenhuma morte de fato, todas
elas confinadas às elipses de uma tristeza que não
tem vez em um filme de incarregável leveza. Para os super-heróis,
a única morte realmente marcante é a do trauma inicial
– aqui, como em Batman, a morte dos pais. Se há um
drama em Inquietos – tradução até
certo ponto exata para o título original, mas que tira
um duplo sentido precioso: aqueles que não descansam, quanto
menos em paz – é justamente o de como se relacionar
com mortais uma vez que a morte já foi contornada, e que
o herói, sabe bem, jamais morrerá.
O
drama em Inquietos não é, portanto, o de
Annabel (Mia Wasikowa). A ela, coube ter o que todos temos: um
tempo de vida – mais longo até do que o da maioria
dos pássaros. O drama é todo do herói –
daí sua aparência de dândi caído, condenado,
como Rimbaud, à eterna juventude; e também as passagens
anacrônicas dos jogos de esgrima, da amizade com o kamikaze
fantasma, do trick or treat de gente grande, do hábito
infrutífero de jogar pedras em um trem que não pára
de avançar, como os ponteiros de um relógio –
que sabe que não há descanso possível; que
as coisas terão fim e ele não tem outra opção
que não sobreviver a elas. É aquele que se inscreve
na morte, riscando com giz o contorno do corpo no chão,
para depois levantar e sair dele. E seguir assim, de enterro em
enterro, até encontrar alguém para deitar ao seu
lado e justificar a fixidez do contorno, em seu desejo não
de vida e de movimento, mas de morte e paralisia.
Em
sua crítica aqui na Cinética, Pedro Henrique Ferreira
diz que as personagens de Inquietos apostam em um romance
já fadado ao término. Qual romance não está,
porém, naturalmente condenado a um dia acabar? Em Inquietos,
o cinema é justamente a oferenda de morte, a possibilidade
de congelar em um instante, em um fotograma, os momentos de plenitude,
de eternizar essa certeza e de reapresentá-lo como aspiração
possível ao espectador. Em três meses, é possível
se fazer muitas coisas, mas não tudo. O que o cinema pode
é justamente perceber a intensidade daquela relação,
da entrega a esses momentos, e oferecer, em alguns poucos minutos,
a possibilidade intangível de saltar de desejo a desejo,
e permitir que eles possam ser vistos e revistos, de novo e de
novo. E se, envoltos por esse turbilhão, as personagens
perceberem que não sobrou tempo para aprender francês,
há sempre a possibilidade de o filme eternizar todos esses
momentos lhes cantando uma pequena chanson.
Dezembro de 2011
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