sessão cinética
Intervenção Divina (Yadon ilaheyya), de Elia Suleiman
(França/Marrocos/Alemanha/Palestina, 2002)
por Eduardo Valente

A política do cinema

Um Papai Noel é perseguido colina acima por um grupo de garotos até que, com ele devidamente encurralado e esfaqueado, um crédito revela para nós aonde se passa a cena: Nazaré. A primeira cena de Intervenção Divina é um microcosmo bastante fiel daquilo que veremos dali por diante ao longo de pouco mais de 80 minutos: uma mistura de um humor cáustico e incisivo (sem trocadilhos) com uma violência tão inevitável quanto, ainda assim, surpreendente e onipresente. Ao longo das sequências seguintes, Elia Suleiman nos apresenta uma comunidade palestina onde a rotina surge como elemento inescapável, com certeza ditada pela impossibilidade de locomoção para fora dos espaços, como veremos mais adiante. Trata-se de uma comunidade onde a violência parece ser a linguagem escolhida a cada gesto de relacionamento entre vizinhos.

Impressiona, nesta primeira parte do filme, como Suleiman constrói este sentido de comunidade através de uma série de esquetes carregados de humor, mas cuja soma vai se tornando menos e menos engraçada a cada repetição, porque o sentimento de desespero e impossibilidade de escape vai sufocando gradativamente qualquer possibilidade de “graça”. A percepção da inevitável infiltração da violência em cada fresta do cotidiano vai entupindo lentamente as artérias do filme até culminar com um inevitável enfarto. A partir da internação num hospital de um dos homens que acompanhamos, o próprio Suleiman entra em cena, interpretando o filho deste. Para além das cenas dele com o pai, porém, ele adiciona uma outra narrativa para o filme, a dos seus encontros com uma mulher em frente ao checkpoint israelense que separa Ramallah de Jerusalém.

Daí em diante, Intervenção Divina vai dando passos que o afastam cada vez mais do realismo, abraçando firmemente o sentimento de que, para dar conta da realidade palestina sob o jugo israelense, só mesmo o surrealismo e a fantasia. São momentos particularmente fortes aqueles em que um balão atravessa a fronteira das cidades, e o inesperado mergulho na fantasia e no cinema de gênero através de uma ninja palestina – possivelmente a mais potente reescritura da inevitabilidade da História pelo poder do cinema até o assassinato de Hitler em Bastardos Inglórios (curiosamente sob a perspectiva oposta do povo judeu).

Intervenção Divina é o filme do meio numa trilogia realizada por Suleiman para dar conta da vida na Palestina ocupada. Nele, Suleiman leva ao ápice o seu domínio do colocar em cena, numa mise-en-scène que, não por acaso, sempre recebe muitas lembranças do cinema de Jacques Tati, cujo humor sempre foi construído a partir da e para a câmera, com um agudo sentido político na relação entre indivíduo e comunidade. Assim como Tati, Suleiman demonstra enorme capacidade de reinventar cada cena com um corte ou movimento de câmera, que revela sempre um outro olhar possível, outro ponto de vista. Assim, a dor pela perda de um pai pode também ser um choro por cortar cebola, tal como uma queda de braço pode virar a ajuda para alguém se levantar. O que nunca muda é a crença de que a Palestina ocupada e oprimida por Israel só pode ser resumida com uma imagem: uma panela de pressão. Que, a julgar por Intervenção Divina, é mais que certo que explodirá.

Março de 2010

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