Inútil (Wuyong), de Jia Zhang-ke (China/Hong Kong, 2007)
por Paulo Santos Lima

Muito além do "saiba mais"

Em Inútil, Jia Zhang-ke envereda pelo mundo da moda para chegar a uma praça que lhe é bem familiar: o ser humano, sua existência traduzida em seus afazeres mais prosaicos, sobretudo o trabalho. Assunto bastante presente na obra do cineasta, a labuta, além de sempre ser uma questão para os personagens, também evidencia todo um estado de coisas: os costumes, a pulsão de vida, os transtornos afetivos e, sobretudo, as transformações.

Inútil consegue agregar uma série de questões, pois da roupa saberemos tanto sobre os meios de produção como as culturas locais, a expressão humana, e tudo isso ilustrando as transformações do processo histórico. Inútil segue uma linha teleológica, senão dissertativa, sobre a situação da China continental (ou de parte dela, ou ela sendo a parte do todo, não importa). Um formato, em princípio, bem coadunado com o documental – mas a forma com a qual o filme se faz documentário vai muito além do “saiba mais”.

Vemos, no começo, graças a fluidos passeios que a câmera faz no espaço, sobretudo em travellings laterais, uma grande linha de montagem de uma fábrica tecelã. O branco e cinza “hospitalares” predominam, e saberemos sobre certas doenças que os operários adquirem – algumas misteriosas, talvez estresse. O filme, então, parte para um ambiente literalmente mais orgânico: o ateliê de uma estilista chinesa, Ma Ke, criadora da marca Exception. Ela defende o uso de roupas feitas a mão, porque essas sim teriam uma história, e, assim sendo, não teriam a descartabilidade das peças feitas em produção em massa (“de má qualidade”, diz ela).

Ma Ke conta sobre enterrar as roupas para que elas adquiram uma história, ganhem marcas. Tudo bastante orgânico, com a câmera atenta ao chão de dormentes, à área de criação de Ma Ke. Não à toa, o filme viaja até Paris para mostrar a coleção da moça no Fashion Week 2007: uma verdadeira instalação, com canhões de luzes, roupas orgânicas, modelos maquiados como se recém-saídos de um lodaçal. Uma performance mostrada como um frenesi de imagens. Criação chinesa exposta na Europa: é a nova China respondendo artisticamente ao mundo, o filme parece nos dizer.

Aí o filme retorna à China, com Ma Ke visitando um lugar de seu passado, Fenyang. Só que logo a estilista some do filme (quase literalmente) em meio às imagens da cidade mineira, com seus operários, alfaiates e fregueses – tudo empoeirado, bruma pesada à la Deserto Vermelho de Antonioni, homens enegrecidos pela fuligem posando para a câmera, outros lavando-se do carvão na saída do trabalho. Um espaço sob transformação, algumas ruínas (a alfaiataria está bocado combalida), mas a vida continua, e com humor, causos, e alternativas (um alfaiate virou mineiro porque sua atividade encareceu diante do baixo custo da produção têxtil em série... os novos tempos).

É esse ex-alfaiate que veremos comprando uma roupa de loja (a tal de “má qualidade”, como disse Ma Ke) para a esposa. Ambos, garbosos ao seu modo, passeiam de moto na mais lúdica das imagens do filme, com a beleza transparecendo nessa vida feliz que segue ali, como a motocicleta, adiante. Um casal fazendo história, numa cidade cujos trabalhadores também “tingem” suas roupas de “má qualidade”, sintéticas e tal, com suas histórias, vivências, trabalhos. Elas ganham a mesma aparência das roupas performáticas de Ma Ke: encardidas, amassadas, manchadas: ali estão verdadeiros sítios arqueológicos da existência humana na Terra.

Temos, assim, uma dialética entre dois elementos que se fundem num terceiro, mais antenado como produto de um processo histórico. A fábrica que produz suas roupas anônimas, a grande idealista que defende o retorno a um estado mais orgânico, saudável, humano, e a força de vida sobressaindo-se sobre as condições adversas de um local insalubre, com estilos de vida desmoronando e outros ressurgindo ou remodelando-se – e a certeza de que a história está sendo feita. A vida é simulada embalada na criação, no cinema, na moda, na arte, mas é na existência cotidiana, física e real, que a vida se mostra como a maior certeza de um mundo que renasce e morre em moto-perpétuo. Um homem pedalando uma máquina de costura mecânica, plano único, é Jia Zhang-ke resumindo todo esse texto numa única imagem.

Outubro de 2007

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