Irina Palm (idem), de Sam Garbarski (Inglaterra, 2007)
por Francis Vogner dos Reis

De mãos limpas

Alguém já disse que o cinema inglês é o pior do mundo. É um exagero, apesar de que os maiores diretores ingleses – Alfred Hitchcock e e Charles Chaplin no topo da lista – foram cineastas do cinema americano, assim como boa parte dos mais memoráveis filmes feitos na Inglaterra eram de estrangeiros como Stanley Kubrick, Joseph Losey, Michelangelo Antonioni. Mas a despeito do fato de os cineastas ingleses não se entenderem com a Inglaterra, o cinema britânico não é o pior – mas por pouco. O fato é que o cinema inglês contemporâneo é o mais conservador, o mais auto-indulgente e também (ou sobretudo) o que mais acredita na demagogia como estratégia narrativa. Essa visão de conjunto é baseada no que chega no nosso circuito de cinema e no mercado de DVDs.

Apesar do diretor Sam Garsbarski ser alemão, seu primeiro filme realizado na Inglaterra contém todas as características de alguns filmes de sensação made in England: alguém de respeito faz algo vergonhoso e ultrajante, mas tem lá seus motivos e muitas vezes possuem até uma auréola beatífica que faz valer um abismo entre o coração da personagem e o ato. Ou Tudo ou Nada, Garotas do Calendário (esses dois, duas “inocentes” comédias), Irina Palm – e até Vera Drake, de Mike Leigh, em certo aspecto. Estão todos ai para provar que por uma boa causa vale tudo, até se expor socialmente em atos considerados (pela fauna social do personagens) indignos ou de mal gosto.

Mas Irina Palm amplia à enésima potência os problemas de seus antecessores. A começar por uma dramaturgia esquemática que se preocupa primeiramente em justificar (ou absolver) de todas as maneiras a escolha de sua personagem central. Primeiramente o esforço é mostrar uma situação extrema: uma avó (Marianne Faithfull) tem seu neto doente e a família não tem o dinheiro para o tratamento. Depois, toda a hostilidade de sua situação social, o fato de ser viúva, classe média baixa e não conseguir emprego em razão da idade e da falta de experiência. Em seguida aparece a oportunidade, em uma zona chamada Sexxy World, de punhetar marmanjos que colocam seus membros em um buraco na parede. Onanismo impessoal: ela não os vê, eles também não sabem de quem se trata a dona da “mão de veludo”.

O filme de Sam Gerbarski  implica um fato escandaloso e o olhar social sobre ele. Implica, mas não problematiza. Vale o (falso) escândalo, não o drama. É um mecanismo muito simples: ela realiza um trabalho imoral aos olhos dos outros e tem de lidar com as consequências. É uma fórmula sem segredos, que denuncia o conservadorismo, mas não toma posição contra ele ao transformar sua personagem numa exótica exceção ante a regra e fazer do seu trabalho algo um tanto grotesco, apesar de querer ver isso com certo sentimentalismo solidário. Grotesco e principalmente covarde, porque não transforma a questão central em um conflito moral, no sentido de ser uma decidida escolha da personagem, de tomada de posição do próprio filme. Ele prefere que a vejamos como uma sacrificada altruísta, ao invés de uma mulher em situação financeira delicada que descobre um “dom” e mesmo a despeito da sua vergonha e do olhar dos outros, escolhe entrar na fogueira. 

A situação é desconfortável, mas a tal situação está praticamente ausente do filme, visualmente e também como conflito. Não que se peça para que a coitada da atriz fizesse o delicado ofício manual em live action para a câmera, mas que ao menos o seu trabalho tivesse algum impacto junto à personagem, fosse ele qual fosse – de aversão, desejo ou mesmo mera indiferença. Os conflitos relativos ao olhar externo e do ato em si é jogado (e resolvido) na vala comum do embate com as hipócritas personagens conservadoras de plantão. É mais fácil fazer a personagem Maggie (Irina Palm é pseudônimo no trabalho) reagir às vizinhas que lhe julgam, do que criar situações que confrontem a própria personagem à sua consciência. Em nenhum momento sabemos realmente a sua relação com o seu trabalho, mas sim com o drama familiar. A protagonista passa pelas situações e sempre reage a eles acertadamente, avacalhando com as vizinhas, escondendo dos outros o que é vergonhoso e devotando lealdade ao cafetão frente a outro que lhe promete ganhos altos.

Todo drama que se preza acredita que os personagens vão de um ponto A para um ponto B, que existe uma transformação nesse processo, porque as contradições e as crises estão ali – mesmo que o personagem nada aprenda, nada mude, ele fica marcado. A personagem Irina Palm é unidimensional, ela é uma mãe. O filme deveria se chamar Maggie, não Irina Palm: seria pelo menos mais honesto. Alguns críticos disseram que o filme humaniza, busca dignidade no baixo mundo, etc. Nada disso. Prefere preservar a todo custo a “Maggie” mesmo que isso desumanize a personagem. A relação que o filme tem com a personagem é mesmo uma de cafetinagem: ela passa pelos conflitos pessoais, não se relaciona seriamente com nenhum deles e termina como começou. Sem mácula.

Maio de 2008

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