plantão do YouTube A
mãe de Isabella e a Poeta do Fantástico por Cléber
Eduardo
Embora a primeira versão das linhas
abaixo tenham sido escritas no dia 11 de maio, mesmo dia da entrevista exibida
no Fantástico sobre a qual esse artigo é centrado, o texto sofreu algumas modificações
desde então, chegou a ser aposentado, retornou à existência. Por que? Porque a
crescente banalização dos procedimentos audiovisuais, a crescente naturalização
de determinadas estratégias, como se esses procedimentos não operassem visões
políticas para a imagem e imagens políticas em suas visões, solicita uma reação
com reflexão, sem o ímpeto pouco distanciado das reações imediatas, mas com a
busca de uma reflexão pulsante, com atitude, sem posar de ciência ou revelação.
As
três câmeras, os cortes e a regência de Poeta
Ana
Carolina Oliveira, mãe de Isabella, no Fantástico. Deixemos de lado a parte que
fala alto aos sentimentos coletivos, amplificados pelo fato de a entrevista ter
sido exibida na noite do dia das mães, e esqueçamos ainda a parte vinculada ao
entrecho investigativo da situação. Interessam somente determinados momentos da
narrativa jornalística, operada pela edição das imagens captadas com três câmeras
(plano, contraplano e plano lateral), pela presença cênica da apresentadora Patrícia
Poeta e pelos flashbacks proporcionados pelas palavras de Ana Oliveira.
Em dado momento de seu desabafo confessional, Ana Oliveira
desaba em lágrimas. Uma voz do extracampo, com tom de ordem: “Respira fundo”.
São dois minutos e 30 segundos de entrevista. Pedido para respirar fundo é um
possível gesto de solidariedade. Uma forma de dar um abraço, de estender uma mão.
No entanto, quando essa solidariedade se dá diante de três câmeras e da obrigação
de colher material para o Fantástico, a solidariedade soa como precaução. Evita
o risco da desistência da entrevistada.
Poeta emenda uma
pergunta ao fim da resposta engasgada de Ana Oliveira, mas, imediatamente após
a prova de sua produtividade como jornalista, pergunta à entrevistada se elas
podem continuar. São dois minutos e 45 segundos de entrevista. Na verdade, Poeta,
antes da pergunta, já continuava. A pergunta (“a gente pode continuar?”), claramente,
é uma auto-defesa. Poeta parece menos preocupada com a entrevista e mais com sua
atitude diante da mãe em luto. Ana Oliveira, que está no Fantástico para falar,
mas também para chorar seu luto individual na esfera da coletividade, concorda.
Continuam.
Uma “decupagem” minuciosa
O
primeiro plano mostrado tem como alvo a entrevistadora. A entrevistada está quase
de costas, quase de perfil. O plano seguinte é do rosto de Ana Oliveira, destacando
o nome Isabella em sua camiseta. Os planos se intercalam, mais aberto e direcionado
para a Poeta quando ela pergunta, mais fechado no rosto/camiseta de Ana Oliveira
nas respostas. Basta a mãe ficar de voz engasgada, embargada, ameaçando falhar
que, sem nenhuma sutileza, somos submetidos a um zoom no rosto dela. Um
minuto e 17 segundos de narrativa.
O nome de Isabella não
mais importa. Isabella não importa mais, nem seu pai, nem sua madrasta, nem o
promotor. Importa a lágrima, a perda do controle de uma mãe, que, até então, chegou
a ser acusada de frieza diante da perda da filha. Motivo: não chorava diante das
câmeras, não queria falar dos seus sentimentos. Como essa mãe, deve pensar o senso
comum, não divide sua dor? A TV passa a ser o instrumento, portanto, de luto de
uma comunidade. Começa-se a perceber, na imagem, que a entrevista é a chance,
no Dia das Mães e no programa das situações fantásticas, da mãe mais famosa do
Brasil derramar suas lágrimas. Era a oportunidade para ela ser uma mãe comum em
circunstância incomum.
No plano seguinte, de Poeta, o enquadramento
está mais fechado em seu rosto, de modo a mostrar a reação da jornalista à reação
de sua entrevistada. Com dois minutos e 53 segundos, depois da câmera mais fechada
no rosto de Ana Oliveira abrir o plano e descer para enquadrar uma girafinha de
brinquedo, surge um terceiro ângulo, lateral, que também desce do rosto para o
“animalzinho”. A cena ganha um objeto cenográfico, que, pela importância afetiva
para a entrevistada, entra em cena como dado dramático.
Essa
mesma câmera lateral, que enquadra as duas de perfil, procura momentos de mise-en-scène.
Com três minutos e oito segundos, vemos a imagem de Poeta refletida no espelho
do ambiente, mas com seu corpo e rosto fora do quadro ainda, criando um efeito
de plano e contraplano. O plano é da entrevistada, pois começa fechado nela, em
suas mãos, e vai subindo até seu rosto, quando, pelo espelho, vemos o rosto de
Poeta. O rosto no espelho, o corpo fora do quadro. Poeta ali é a imagem da imagem.
É imagem captada pela câmera e imagem captada pela câmera do reflexo do espelho.
Não é presença, mas somente imagem, ou uma presença-imagem, mais que imagem-presença.
Em
outro momento, ainda mais estilizado, com 4min20seg, a câmera está no perfil da
mãe, com a imagem levemente desfocada do perfil da entrevistadora no espelho,
criando uma composição de plano e contra plano em um mesmo plano. O espelho passa
a se tornar, ao contrário da camiseta da mãe e da girafinha da filha (instrumentos
dramáticos), um instrumento estético. Como filmar o melodrama com alguma elaboração?
Com maneirismo. É preciso já filmar a imagem, o reflexo, não a presença física,
sem intermediários. Estamos em momentos de mediações variadas. O espetáculo da
perda vai sendo construído nos mínimos detalhes.
Com 4:33
min, Poeta diz que, nos últimos anos, não tinha visto e ouvido um caso tão midiático
quanto o caso Isabella. A menina morta, em suas palavras, torna-se um caso. Esqueçam
gestos cênicos de solidariedade. É um caso. Importa o caso, não as vidas, não
a morte. Poeta naquele momento precisa fazer o papel de quem está dentro de um
caso. Precisa ser íntima sem perder a distância de quem precisa manter o caso.
Ana
Oliveira chora de novo, agora de forma mais sutil. Um corte nos dá a ver o ângulo
da câmera lateral, que, por sua vez, nos mostra a mão de Poeta sendo extendida
até o joelho da entrevistada, em mais uma espécie de “Respira Fundo”. Nenhuma
palavra naquele momento, mas as mãos falavam sem precisarem de som
A
memória comunitária pelo flashback
“Vamos falar
um pouquinho do sábado?”. Imagens da entrada do edifício London, com legenda a
informar que é uma imagem do dia 29 de março, o dia da morte de Isabela, mostrando
a busca pela imagem verídica, aquela imagem que, apesar de mostrar a frente de
um prédio e uma rua vazia, traz algo de verdadeiro. Corte para carro de polícia.
Corte para zoom até duas janelas com as luzes acesas. São essas as imagens
da memória midiática da noite de sábado em 29 de março de 2008.
Quando
a entrevistada fala da entrevista dos reús no mesmo Fantástico, a Globo remete
a trechos da entrevista de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, em uma espécie
de perícia da imagem, por meio da qual a imagem passa a carregar evidências de
suspeita. Em outras palavras, se a intenção do casal era livrar a cara com a tentativa
de convencer o país sobre sua inocência em horário nobre de domingo, eles acabaram
colocando a corda no pescoço, segundo se constata ao se ouvir as palavras de Ana
Carolina Oliveira no mesmo programa. Ela considera a entrevista uma farsa, um
teatro, uma encenação da inocência perdida.
Uma imagem tudo
revela, segundo esse raciocínio, portanto, se é possível mentir na imagem, a imagem
não mente para nós. Lançada a suspeita, a Globo deu a prova da suspeita (a outra
entrevista), em parte assinando embaixo das palavras de Ana Oliveira, em parte
abrindo mão de tomar partido para deixar a imagem falar por si. Nenhuma perícia,
nenhuma prova circunstancial, nenhuma testemunha, nenhum documento pode com uma
imagem, seja a imagem da verdade de uma mãe, seja a imagem da mentira dos suspeitos,
desde que, antes dessas imagens, estejamos preparados (pré parados) e formatados
por pressupostos para lidar com elas.
* * *
A essa altura do caso,
mais de dois meses após a morte de Isabella, a temperatura baixou. E nos ensina
o senso de imediatismo que, com a diminuição da temperatura, não há mais motivo
para pensar. Menos motivos ainda para retornar a um “caso audiovisual”, um fenômeno
midiático-cultural, talvez uma das maiores audiências dos últimos anos, se não
diretamente, certamente por intermédio de terceiros. Se retornamos, é porque,
embora valorizemos as reações no calor da hora quando elas são solicitadas, por
outro lado, quando a solicitação é de decantação da experiência, privilegiamos
a reflexão à reação. Uma reflexão é também uma reação, mas, nesse caso, não somente
gerada pela experiência, mas também por um pensamento construído por etapas, não
por impulsos.