in loco - cobertura dos festivais
A Caça (Jagten), de Thomas Vinterberg (Dinamarca, 2012)
por Paulo Santos Lima
Dogma
2012
Tão longe e tão perto do colega
desde que o Dogma 95 perdeu o falso gás de sua arrancada
sem fôlego, Thomas Vinterberg reencontra Lars von Trier
em A Caça, que tem forte parentesco com Dogville.
Os dois longas, aliás, carregam aquilo que se poderia chamar
de “verdadeiro legado do Dogma 95”: mais
interessante para situar os filmes e uma certa visão de
mundo nascida com o programa que não o chulo golpe de marketing
que era o projeto estético gritado pela dupla nos anos
90, colocando-se como uma forma de filmar e mostrar singular diante
de uma suposta mesmice cinematográfica ao defender o uso
mínimo de recursos e trucagens típicas da expressão
cinematográfica. Ali, não avisavam que a própria
história do cinema tinha feito tais escolhas bem antes
e de forma melhor - mesmo alguns anos antes, como no caso de um
El Mariachi (1992), de Robert Rodriguez. Mais a flâmula
que os tiros, o que ficou patente nos filmes do Dogma 95 era uma
busca pelo impacto (visual e de abordagem) e um olhar devassante
e bem detido no específico para aspirar a um escopo mais
largo, sociológico e universal a respeito do comportamento
humano. Ambos traços patentes continuaram presentes em
todos os filmes de Trier e Vinterberg, à parte cada um
seguir caminho distinto e experimentar outras vias de construção
cênica.
Experimentar. Supostamente, Von Trier “ousa” mais
que Vinterberg, e Dogville (2003) até ganhou medalha
de “filme de arte” ao transformar um drama em quadro
negro para, na tradição fascista, explicar o funcionamento
de uma sociedade – ali, definida como a norte-americana,
pois como colocar uma obra na mídia, hoje, se não
apontando o dedo pra uma falsa questão ou alvo falso? Mas
talvez Vinterberg, ao abandonar a estética gritada, de
excesso, com imagens berrando na tela, adotada em Dogma do
Amor (2003) e em Querida Wendy (2004), para adotar
um estilo mais sóbrio, caso de Submarino (2010)
e deste A Caça, tenha encontrado uma certa esperteza
(não inteligência) cinematográfica para prosseguir
com sua sociologia. Em vez do tumulto causado por um Anticristo,
o tom sóbrio que Vinterberg escolhe para falar sobre a
violência de uma comunidade contra um professor falsamente
acusado de abuso sexual ganha um status de “filme necessário”,
de reportagem local, texto de sociólogo na página
3 do jornal.
O
tratamento é outro, mas não há tanta distinção
entre Vinterberg e Von Trier, entre A Caça e Dogville.
Se este último era uma tese explícita sobre o funcionamento
dos seres humanos (sim, poderia ser um Judeu Süss)
e ainda contava com seu diretor para expandir o impacto do seu
discurso antes e depois da sala de cinema, Vinterberg escolhe
uma postura mais “religiosa” inclusive no estilo:
a transparência e o naturalismo típico dos dramas
realistas, quase de um Ken Loach, inclusive contando com a alta
performance dos atores (Cannes premiou o ator que faz o professor
Lucas, Mads Mikkelsen). Não calca o giz na lousa, como
Trier, e troca o estilo, mas sem negar os mesmos procedimentos
morais sobre os personagens, inclusive estruturando a exposição
em “grandes acontecimentos” que edificam uma ilustração
sobre como funciona a comunidade compreendida pelos amigos diletos,
vizinhos e conhecidos de Lucas. São escolhas que determinam
um tabuleiro preciso definido entre dois lados morais: o certo
e o errado, a civilidade e a irracionalidade.
Naturalizando as representações, o filme ganha status
mais embasado, diferente do manifesto gritado de Dogville.
Quão pior, pois A Caça escreve um espectro
sinistro sobre aquela comunidade selvagem que, em suma, representa
a civilização ocidental do século XXI. É
um filme-denúncia sobre o fundamentalismo do medo (algo
de nossos tempos de patrulhamento moral), mas adota a mesma violência
de seu alvo: em vez de negar o açoitamento dos personagens,
olha com especial atenção o mártir arrebentado
no supermercado, seu próprio filho adolescente sendo esmurrado
por um brutamontes 100 kg mais forte, a cachorra de estimação
morta, com língua pra fora, em close.
Trier
é mais malandro: inseriu o sexo explícito como momento
libertário dos “rebeldes contra o sistema”
de Os Idiotas, estilizou a violência por meio de
uma simbologia simplória em Dogville. Vinterberg,
sempre mais direto: radiografias revelando o trajeto de balas
trespassando corpos em Querida Wendy, a diretora da escola
onde Lucas trabalha vomitando ao imaginá-lo ejaculando
na boca da pequenina criancinha, pedra atirada pela janela, lata
arremessada rachando a cuca do professor etc. Sintomático
que, estilos distintos, ainda assim os procedimentos coincidam,
pois a indignação do espectador é bem abastecida
nesses excessos de injúrias, seja Nicole Kidman aceitando
passivamente a exploração dos moradores de Dogville,
seja a desfiguração moral do injustiçado
Lucas. Mas a catarse final de Dogville, pelo menos, não
instiga o medo, que é a grande pauta de A Caça.
Pior: A Caça transforma uma menina de 5 anos,
aquela cuja mentira infantil dá a entender aos adultos
que Lucas a tocou, em símbolo da ameaça.
Medo. Uma obra de arte pode mostrar o terror, mas não o
medo, pois este é comum no cinema de propaganda totalitarista.
O lugar da arte é outro. Mas, afinal, qual o lugar exato
que este filme finca seu posicionamento? Dá pra sacar,
por exemplo, que o olhar do filme sobre seu universo, que aparenta
ciência, é bastante deformado (e sensacionalista,
à la Dogma 95) sobre assuntos tão concretos e contemporâneos
a nós: a pedofilia, a violência, o patrulhamento
moral, a facilidade com a qual o estado de direito vai pro brejo
etc. Ciência, ciente, eficiente, científico... basta
uma tese bem armada para confundir a todos (até Vinterberg,
quem sabe): a devoção de A Caça
à sua vítima, inclusive apresentando-lhe com uma
complexidade bem distinta do tom folhetinesco aplicado aos outros
personagens, arma uma situação insólita,
pois Lucas é a vítima de um mundo – pior,
as chagas de Lucas são de nossa responsabilidade, porque,
afinal de contas, vivemos integrados numa sociedade. O homem versus
o sistema, aqui neste caso de Lucas, não concede vulto
heroico ao protagonista, mas sim um espectro demoníaco
aos antagonistas. Poderíamos citar O Processo,
de Kafka (ou o filme de Welles), ou os dramas Kazan e os melodramas
de Sirk, nos quais existe uma instância fundadora daquele
estado de coisas, ou seja, natural àquela sociedade, e
por isso mais multifacetada, mais resultado de uma cultura e duma
materialidade histórica, mais interessante de estar servindo
de espaço do drama: o jovem casal de Clamor do Sexo
ou a viúva e o jardineiro de Assim Estava Escrito
são vítimas, claro, pois esmagadas pela estrutura
social, mas jamais coitadinhos: eles percebem a violência
por tentarem rasgar a membrana.
Lucas
é diferente deles. A passividade com a qual ele segue pelo
calvário da injustiça é assistida com especial
calma pelo filme, tranquilidade sádica, que olha com peninha
seu protagonista mas lida com aquele assunto nas mesmas diretrizes
daquela comunidade. Lucas sofre o diabo, entre o desabono físico
e moral. O que torna importante lembrarmos do que há de
sádico (porque gráfico e ritualístico) no
martírio de Cristo, que rendeu uma rica iconografia que,
de certo modo, celebra a graça em resistência à
violência. Entre uma fé que se transmutava em orgasmo,
Mel Gibson creditou ao grand guignol o espetáculo
da violência em A Paixão de Cristo,
que é mesmo o filme que melhor dialoga com A Caça,
com os outros filmes de Lars von Trier e de Thomas Vinterberg
e, mais diretamente, com a filosofia de impacto do Dogma 95.
Janeiro de 2011
editoria@revistacinetica.com.br |