in loco - II jornada de cinema silencioso
Ozu e Mizoguchi em uma sessão de ruídos
por Cléber Eduardo
Em
dado momento de Amigos em Conflito (Wasei Kenka Tomodachi, Japão,
1929), de Yasujiro Ozu, um carro vem em direção a uma cerca. A câmera filma-o
de frente. Ao lado, um trem em alta velocidade. Vimos em planos anteriores os
dois passageiros do automóvel acenarem para uma moça no trem; também havíamos
sido apresentados a gags geradas em alguma medida pela disputa dos dois
rapazes pela atenção da moça. Há uma tendência a esperarmos, pelo histórico no
filme, situações patéticas e desastradas, como nos estimula uma queda de Ozu para
a gag em 1929, ainda em sua fase silenciosa – impressão essa salientada
pela imagem dos rapazes no plano anterior, acenando em direção ao trem sem olhar
para a frente e para a cerca filmada em primeiro plano. Tudo nos indica que o
carro irá bater na cerca. Ou atravessá-la. No entanto, após
o riso da platéia presente na sala BNDES da Cinemateca, o carro pára, sem nem
se aproximar tanto da cerca. Não sabemos se o diretor tinha consciência do efeito
do carro deslocando-se em direção ao obstáculo e a nós na platéia, mas nos parece
claro que o riso da platéia, acima de tudo, é a manifestação do entendimento de
um código (do filme) planejado para provocar risos. Quando o caro pára, quase
se pode ouvir, em sinal de frustração (mais que de alívio), um suspiro de interrupção:
os espectadores já haviam se preparado para rir da colisão, rir com ironia e com
superioridade da distração dos dois rapazes. No entanto, como se recusassem a
ser objetos do riso irônico, os rapazes nada sofrem. Enganam o espectador. Não
sei se os japoneses riam em 1929 ou 1930 ao verem essa seqüência. Nem importa.
Porque assim aconteceu na sessão da Jornada do Cinema Silencioso, na noite de
sábado, dia 9 de agosto de 2008, com acompanhamento musical de Danilo Tomic, Reiko
Nagasse e Yuko Ogura – ocasião na qual Amigos em Conflito foi exibido (restaurado
em 35mm, versão reduzida, a partir de uma cópia em 9,5mm, somando um total de
14 minutos). Sendo uma versão reduzida, é fundamental assumirmos, antes de quaisquer
considerações, que não se trata de uma obra tal qual fora pensada, realizada e
lançada originalmente, mas de “restos” do organismo cinematográfico (o negativo,
a cópia), revivido pelas restaurações, diante das quais temos de nos agarrar à
evidência, sem com isso deixar de pensamos na obra completa à qual jamais teremos
acesso. Sendo um filme do fim dos anos 20, japonês e silencioso, também é fundamental
assumirmos, antes de pensarmos sobre o filme, que sua recepção hoje é específica,
pois está mediada por nosso repertório dos oitenta anos seguintes do cinema. Pois
são percepções assim, eventualmente marcadas por lacunas na tela e por acompanhamentos
musicais não projetados pelos realizadores dos filmes, marcadas ainda pela ocasional
ou freqüente dificuldade de reagirmos aos filmes sem nos perdermos no emaranhado
de ruídos de entendimento gerados pelos códigos de outro momento histórico, que
se vivencia na Jornada do Cinema Silencioso. Não se trata, necessariamente, de
vermos filmes somente, mas de vivermos uma experiência, uma sessão, com todos
os ruídos possíveis e intervenções inevitáveis ou programadas (as narrações, as
trilhas musicais). Um encontro com imagens nunca vistas, que sobreviveram a estados
de coma, com ou sem perda de algumas partes do organismo. Portanto,
ao se vivenciar sessões como essas, a reação do público, obviamente, interfere
na recepção. Do que se ri, exatamente, em Amigos em Conflito? Do acidente
em vias de acontecer com os rapazes ou da suposta (e frustrada) crueldade do filme
em relação aos personagens? Em quaisquer dos casos, seja por reconhecimento de
uma estratégia do autor, seja por um sadismo legitimado pelo humor com o qual
o filme havia sido conduzido até então, há um olhar irônico, superior, de quem
está em condições de se divertir com o sofrimento ou com o sadismo alheio. Seria
essa reação reivindicada pelo próprio filme, por sua suposta crueldade nesse momento,
ou seria sintoma de uma percepção específica, ocidental e contemporânea? Mais
risos, agora em A Marcha de Tóquio (Tokyo Koshin-kyoku), de Kenji
Mizoguchi, exibido na mesma sessão, com duração de 22 minutos. Novos ruídos parecem
evidentes: diante das situações nas quais o casal de personagens apaixonados é
informado de seu “incesto”, explicitando uma mão do destino e do autor para inviabilizar
a entrega amorosa e um futuro enlaçado, a platéia cai na gargalhada em reação
a uma situação quase certamente pensada e realizada para ser levada a sério. Por
que se ri? Menos do sofrimento dos personagens, que levam rasteira do “destino”,
e mais da crueldade do próprio autor, que, além de colocar um obstáculo social
e cultural entre os dois (ele, rico; ela, pobre, gueixa), ainda faz os pombinhos
serem unidos e separados pelo sangue paterno? Os
dois filmes foram antecedidos por Um Garoto Sincero (Tokkan Kozo,
1929), também de Ozu, com duração de 14 minutos. Tendo aberto a sessão, com um
garotinho atazanando a vida de um seqüestrador, em uma variação da matriz cômica
de duplas em oposição, o filme é uma soma de gags. Abrir a sessão com Um
Garoto Sincero, portanto, pode ter estimulado a reação pelo riso ao filme
de Mizoguchi, como se fosse um código, a nos indicar que estamos em sessão cômica.
Isso mostra a importância da ordem de exibição quando se tem mais de um filme
em uma mesma sessão e a interferência de uma platéia de outra cultura e outro
momento histórico na recepção de uma obra em público e na produção de sentidos
para essa obra. Um homem e uma mulher. Homem rico, mulher
pobre. Ele a vê do alto, ele na quadra de tênis, ela fora, em terreno abaixo.
São “unidos” nesse espaço por uma bolinha, que ela tenta devolver à quadra, mas
esbarra no obstáculo da grade. Tudo está dito nessa seqüência. A mulher é uma
imagem aos olhos do homem, uma imagem distante, à qual não se tem acesso, a não
ser que se pague, tendo em vista a atividade de gueixa dela. A tragédia e o romantismo.
Os filmes de Mizoguchi, quando lidam com essa inviabilidade das paixões, seja
por códigos sociais (Os Amantes Crucificados), seja pelo destino (nosso
caso aqui), tendem a sangrar na imagem. Dor. Impossibilidade. Impotência diante
da máquina maligna das circunstâncias inviabilizadoras. Nenhum motivo para se
rir, portanto – nem do autor, nem dos personagens. Agosto
de 2008
editoria@revistacinetica.com.br
|