Joy Division (idem), de Grant Gee (EUA/Inglaterra, 2007)
por Cléber Eduardo

Anti-crítica em nível pessoal
(para um amigo dos anos 80) 

Supõe-se que um crítico de cinema, diante de um documentário sobre o grupo Joy Division, enfoque o documentário, não o grupo, e lide com a linguagem. Nesse sentido, embora se possa analisar as relações entre os sons e as imagens de Joy Divison, a tal linguagem é pouco inspiradora. Integrantes da banda falam da banda e de seu vocalista Ian Curtis. Outras pessoas próximas revelam suas impressões e cultivam suas lembranças. Eles dão seus depoimentos sentados, enquadramento próximo ao 3x4. Vez ou outra, outras imagens são empregadas para conviver com as vozes, em geral imagens de performances da banda, de lugares onde tocaram, das ruas de Manchester – a cidade que, segundo a narração do começo e do final, foi a nitroglicerina criativa e espiritual dos integrantes, com sua concentração de efeitos nocivos da era moderna.

Joy Division é menos sobre a meteórica e curta trajetória do Joy Division, com seus dois LPs, Unknown Pleasures (1979) e Closer (1980), e mais sobre o mito pop Ian Curtis, o vocalista com tintas de erudição, leitor de Dostoievski, Kafka, Burroughs e Ballard, que se matou em 18 de maio de 1980. E como reafirmação de um mito, com imagens de Curtis no palco, com sua atitude em colapso, o filme ressente-se de falta de sintonia, se não com o estado de espírito de Curtis, ao menos com seu universo. Falta perturbação, ansiedade, tédio. Em matéria de estética, estamos no balcão da burocracia.

Supõe-se que um crítico, diante de um documentário sobre algo diretamente ligado à sua experiência, seja um ser humano, antes de ser crítico, com toda a rede de emoções de qualquer um. Nesse sentido, Joy Division, pela figura de Ian Curtis e pela música do Joy Division, tem seu poder. Mas como medir o poder de qualquer obra fora da primeira pessoa do singular? Pois bem, que seja. Até porque toda a afirmação ou julgamento com ares de objetividade e sentença traz embutida a primeira pessoa na assinatura. Pois foi essa primeira pessoa que levou o crítico a ver Joy Division, menos interessado na organização das imagens e sons, mais motivado pela possibilidade de recontactar o Joy Division, ouvir trechos de músicas, sentir a sensação de primeira vez ao escutar a matriz de “Love Tell Us Apart” (depois tornada produto de feira com as inúmeras regravações), saber mais sobre o contexto do suicídio, ver a relação entre o sucesso do grupo e a consequente guinada para a vanguarda de Manchester.

Somente próximo ao final, ouve-se “Decade”, a mais bela canção tétrica/romântica do pop, segundo um amigo de faculdade. A música faz parte do álbum Closer e, no filme, precede as lembranças da morte de Curtis. Faz todo o sentido. Curtis era acometido de crises de epilepsia, dividia-se entre esposa (com filho) e amante, escrevia letras cheias de simbolismos. Pode-se buscar a razão do suicídio nessas situações, na cinzenta Manchester, em uma personalidade esquizo, em uma potente fragilidade e em outras razões somadas. O documentário ameaça fechar questão, mas, até por estar regido pelas pessoas próximas do vocalista, deixa no ar apenas a imagem de um perturbado. E o que importa, no final das contas, é que Curtis, depois de ver Stroszek, de Werner Herzog, colocou a corda no pescoço. Impossível não lembrar de Albert Camus, que via no suicídio a única questão filosófica.

Na adolescência universitária, “Decade”, do Joy Division, foi um baque. Apresentada em vinil importado por um amigo, motivou uma frase inocente, mas nem tanto: “É a mais bela trilha sonora para um suicídio”. A canção tornou-se tema musical de um programa de rádio na faculdade. Tema: suicídio. Não demorou muitos anos para, por meio de uma matéria de jornal, saber da morte do amigo, o tal do vinil importado de Closer (onde está “Decade”), que se matara em circunstâncias inenarráveis. Desde então, nunca mais “Decade”.

Um filme pode ser reconhecidamente frágil em suas escolhas e forte em seus efeitos, não porque esses efeitos são minuciosamente planejados pelas escolhas, mas porque estão acima dessas opções, porque são anteriores a elas, parte do material da vida com o qual o cinema lida sem necessariamente controlar. Joy Division pode ser, portanto, um tremendo filme fraco. Tremendo, apesar de fraco.  

Junho de 2008

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