A
Bela Junie (La Belle Persone), de Christophe Honoré (França, 2008) por
Rodrigo de Oliveira
Onde
houver um rosto
Logo na primeira aula filmada
em A Bela Junie (e haverá muitas), a professora responde a uma provocação
qualquer do garoto-problema da classe dizendo que “para cada situação existem
duas perspectivas, e nenhuma delas é uma verdade absoluta”. É o espaço ideal para
completarmos com o julgamento de nossa preferência a respeito de Christophe Honoré
– pilantra do humanismo blasé, parasita do bom cinema que o antecede, gênio
dos pequenos atos e das grandes emoções, esteta do coração contemporâneo. Difícil
entender como um cineasta de tão poucos filmes e de repercussão tão restrita mesmo
no circuito de seus admiradores e detratores possa ter virado uma questão assim
tão premente; amor e ódio, a essa altura, parecem mais palpites muito fortes que
perspectivas que induzam a um confronto real de idéias. A boa notícia é que Honoré
parece saber bem disso, e não há nada na frase da professora que nos diga que
ali ele estava falando sobre si. A melhor notícia é que a frase diz o mundo sobre
seu novo filme, sobre uma disposição de encenação que pensa sua forma, que anuncia
quais dramas pretende construir e a partir de que princípios – e, ainda por cima,
a frase da professora é uma grande pista falsa. Primeiro,
porque A Bela Junie está longe de querer atingir uma verdade absoluta com
o desenrolar de seu processo: as verdades estão simplesmente dadas, valem para
antes do filme chegar ao ambiente escolar-burguês parisiense, e seguirão valendo
para depois que o filme abandoná-lo. É essa talvez a resolução da equação tão
distorcida em Em Paris e Canções de Amor, quando éramos apresentados
a personagens frívolos no limite da afetação e do desinteresse, até que eles fossem
atingidos pela tragédia (uma separação, uma morte no passado, uma morte no presente)
e aí então finalmente se tornassem densos e humanos, e não mais apenas humanóides
auto-conscientes. A Bela Junie tem um suicídio como clímax, e ele está
muito longe de significar uma virada dramática: respeita-se o luto, pensa-se no
morto e no que sua partida afetará a vida dos que ficaram, mas a morte não é o
ponto de partida nem o catalisador de nenhum amadurecimento. Um
pouco como no romance setecentista que o inspira, “La Princesse de Clèves”, e
na adaptação que Manoel de Oliveira fez dele em A Carta, a morte é do domínio
do fora de quadro (no primeiro caso porque, bem, tudo na literatura está sempre
fora de quadro, e no segundo porque Manoel resume a agonia da doença e a morte
do marido da protagonista por um letreiro simples e direto). Aqui, mesmo gráfica
– e Honoré não resiste à cena do sangue no pátio da escola sendo lavado após a
retirada do corpo do menino – a morte não é mais que um pequeno desvio de rota.
A menina Junie está marcada desde antes do filme por outra morte, a da mãe, e
esse evento parece tê-la envolvido num manto paradoxal de fragilidade emotiva
e firmeza moral que não se abala por nada, nem mesmo com as investidas do professor
de italiano Nemours, que também não ultrapassará o espírito de moleque adulto
e galanteador barato com o qual já havia entrado no filme. Mal se completa um
semestre letivo no curso do filme, mal se passam duas semanas da morte de Otto
para que aluna e professor se vejam debatendo o futuro na cama: deixemos o amadurecimento
para um épico ou um romance de formação, porque aqui não é o caso. Mas
é a respeito das tais duas perspectivas de cada situação que A Bela Junie
apronta sua armadilha, simplesmente porque não existem nem duas, nem três, mas
dúzias delas. Estas perspectivas às vezes têm nome, trama e desenvolvimento dramático,
em outras, apenas corpos e um tempo mínimo de tela – mas estão todas lá. Este
é um filme de sala de aula, e está aí Entre os Muros da Escola para nos
mostrar como existe um código de conduta para filmar este ambiente: há uma certa
obrigação em se dar atenção a toda aquela gente, filmá-los em sua banalidade,
mesmo que não estejam constituídos enquanto personagens relevantes para a trama
– todos ali pertencem àquela geografia, e devem ser filmados nem que seja como
se filmam as montanhas para se dar contexto a uma perseguição num faroeste. Mas
Honoré está tentando algo diferente aqui, e isto fica claro no mais banal dos
planos: aquela mesma professora da frase-emblema está, agora, encostada na parede,
dispersa, ouvindo sem prestar atenção um aluno que lê em voz alta, quando seu
olhar se desvia da sala para a janela, vemos seu novo ponto de vista, um casal
adolescente que se beija apaixonadamente do lado de fora. Se o suicídio de Otto
se tornará um desvio de rota, ele é apenas o mais pungente deles – existem muitos
outros. Assim, os alunos na sala são apresentados não apenas em seu caráter topográfico.
Honoré filma estes rostos como se fossem reaction shots, planos de reação
para os quais, simplesmente, não existe ação a qual reagir. Numa aula de italiano
em que se apresenta uma ária cantada por Maria Callas, veremos estes rostos nas
condições mais diversas, nenhum deles de fato ligados à lição escolar, e para
cada um deles haverá um desdobramento, porque se não reagem a nada que esteja
em cena, mas ainda assim existem dentro dela, estas pessoas só podem estar reagindo
a algo maior – suas vidas, seus dramas particulares, suas experiências e expectativas.
É preciso ir até elas para que não tenhamos a impressão de um simples zoológico. E
todo o encanto de A Bela Junie está aí, nesta sua mania incorrigível de
querer ver. Estamos muito distantes da imposição de uma série de provas dramáticas
cumulativas numa corrida pela cidade (é o que acontece com o personagem de Louis
Garrel em Em Paris), ou da necessidade do alarde como única maneira de
se atravessar um estágio emocional qualquer (os números musicais de Canções
de Amor). Aqui não há espaço para o absoluto, e não é porque se faça uma defesa
do relativismo: é a própria matéria para a construção das verdades que está ausente
aqui. Antes do julgamento é preciso informação, e elas surgem sempre enviesadas
no pequeno caos comunicativo que envolve a experiência destes meninos e meninas.
Eles conversam através de bilhetinhos trocados durante uma aula chata, mas os
bilhetinhos muitas vezes serão extraviados. Há uma carta de amor escrita por um
e atribuída a outro, e toda uma série de mal-entendidos e confusões se seguem.
Um apaixonado pede ao amigo que este espione sua namorada, e onde o amigo vê um
beijo de traição no professor galanteador não havia mais do que uma ilusão de
ótica. As próprias conversas entre os adolescentes são truncadas, sempre em suspensão,
é palpável a dimensão de adultos-em-processo-de-construção da qual eles estão
preenchidos, tateantes que são – não à toa, todas as aulas que acompanhamos são
de línguas estrangeiras: italiano, inglês, russo, é uma questão de falta de domínio
do idioma mesmo. E o registro do filme parece se deixar levar por esses desvios,
de um modo que a força daquele aglomerado de situações não se dê nunca por sua
coesão cumulativa de sentidos, mas por essa deliciosa dispersão. Um
cinema com déficit de atenção, quase. E ainda bem que não há mais nisso apenas
uma atração um pouco infantil pelo que há de mais chamativo e brilhoso. O jogo
de espelhos aqui se dá através de objetos que não tem nada de tão espetacular
a não ser o fato de serem, ali, integralmente diante da câmera (e é por isso,
talvez, que uma nova inserção musical aqui em A Bela Junie soe tão fora
do tom, o momento em que o suposto cineasta-das-citações começa a enxergar seu
próprio repertório como matéria de referência, e não como uma maneira orgânica
de experimentar o cinema). As inúmeras histórias paralelas não estão ali porque
refletem, em algum grau, o teor e a forma da trama central – e se há uma trama
central, é tão somente porque há nela um estopim, Junie, a menina dos olhos-de-Anna-Karina,
e não porque é nela que todos aqueles sentimentos paralelos desaguarão. Estão
ali porque fazem parte daquele mesmo espírito da frase inicial da professora,
porque tomam parte desse prazer em tergiversar que há nas relações entre os meninos,
porque ampliam essa confusão comunicativa onde deveria haver, supostamente, algum
foco. Uma outra professora, de quem não se ouve mais que
uma frase em cena, recebe todo um flashback em Super-8 de seu passado afetivo
(onde, sem surpresas, também se opera o jogo de erros e desvios típico dos amores
adolescentes). Ouvimos a velha senhora dona do café onde a turma se reúne depois
da aula, mesmo café onde Honoré opera um diálogo de planos-de-gente quase como
José Luis Guerin em Na Cidade de Sylvia. Do belíssimo entrecho gay, não
nos pegamos apenas ao triângulo amoroso entre os dois melhores amigos e o terceiro
amante que desestabiliza o romance: também saberemos o que pensará a namorada
de um, também acompanharemos a agonia da namorada do outro enquanto espera o menino
sair da delegacia. E não são momentos furtivos, como o beijo espiado pela professora
do lado de fora da janela não o era: Honoré permite que a força de cada um desses
momentos se apresente e desenvolva no tempo que precisam para tal. Nas mãos de
um “bom montador”, isto tudo estaria na lata de lixo da sala de edição – e é ótimo
que um profissional assim tenha passado longe de A Bela Junie. Honoré
parece ter descoberto aqui um gosto por filmar, e não apenas por promover cenas.
Há um encontro entre Junie e seu professor forjado no movimento de câmera e na
montagem, ambos andando “ao encontro um do outro” sem estarem fisicamente próximos,
que eclipsa todo o trajeto de Garrel em Em Paris (mas, ao mesmo tempo,
que nunca existiria se Honoré não tivesse antes passado por ele). O material de
A Bela Junie parece ser este contraplano dos filmes anteriores, que repete
um tanto de suas fórmulas apenas para tornar mais vivo e surpreendente aquilo
que ainda não vimos. É um jogo de comunicação truncada e desviante também – para
os que amam e os que odeiam, A Bela Junie exige mais que os discursos bem
articulados já de antemão. Os bilhetinhos estão trocados, as cartas se perderam,
o romance atravessou, e assistir a um filme de Christophe Honoré voltou a ser
(ou tornou-se pela primeira vez) um passeio pela incerteza e pelo espaço menos
confortável de um mundo onde nem todas as letras das canções já estão escritas
e decoradas – mas haverá sempre as vozes, sempre os rostos. Março
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
|