in loco - cobertura do Festival do Rio

Juventude em Marcha (idem),
de Pedro Costa (Portugal/França, 2006)
por Cléber Eduardo

Aleluia, Pedro Costa!


Pára tudo. Antes de nos relacionarmos com a sucessão de imagens marcantes e rigorosas de Juventude em Marcha, do português Pedro Costa, é preciso interromper a biografia de nosso olhar e passar por um processo de purificação. Não há como minimamente aceitar sua proposta de cinema sem antes nos submetermos, ou sermos submetidos, a uma descodificação de nossa percepção, a uma “revirginização” do olhar, a um reaprendizado da maneira de relacionar-se com um filme. É necessário apagar nossos critérios prévios de mise-en-scène, interpretação de atores, dramaturgia audiovisual, diálogos e de classificações como documentário ou ficção. Tudo está em questão e fora de questão.

Costa coloca a câmera em um ângulo específico e imutável em cada ambiente, estabelecendo para si uma direção rígida e de mínimas variações, com um caráter monástico e obsessivamente depurado de “encenação” (se a palavra ainda tem sentido aqui). Instala os atores diante dessa câmera fixa, que se mantém quase constantemente “olhando para cima”, com uma inclinação e uma angulação raríssimas, e, sem cortar, evitando a decupagem interna das seqüências (como no primeiro cinema, como em alguns filmes de João César Monteiro, como em momentos de Manoel de Oliveira), filma os corpos estáticos ou as conversas recitadas de atores-personagens (atores com nomes de personagens, com biografias próximas). Simples assim. Complexo à beça. E ainda uma semente para reflexões posteriores sobre essa opção dos principais cineastas portugueses por um olhar fixo, que não se move, que observa as pequenas ações sem correr atrás de quem as protagoniza, sem ficar com o olho percorrendo os espaços para assumir um ponto de vista firme, fixo, preso a um lugar onde se escolheu ficar para ver a cena.

As conversas tratam de questões de pais e filhos, de mudanças (espaciais, inclusive), de permanências no fluxo do tempo, não sem valorizarem-se pela estranha sonoridade das palavras, pelo ritmo enferrujado de leitura sem fluência, em busca de um estranhamento na maneira de se colocar o verbo em cena, de fazer conexões entre o que se diz e o tempo dramático em que se diz.

Ah, o tempo. Será preciso aprender a se relacionar com ele no próprio filme, não apenas por conta da extensão dos planos, que deixa Manoel de Oliveira parecendo um Tony Scott (com o perdão da piada, seu Manoel), mas também por reivindicação da estrutura narrativa, que, antes de ofertar uma noção progressivamente cristalina de simultaneidade entre passado e presente, nos deixa às cegas e perdidos dentro dos quadros.

Ah, os quadros. Pedro Costa parece, como quer Abbas Kiarostami em Dez e em Cinco, evitar a mise-en-scène. Seria um provocador da cena, como se definia Robert Bresson. Filma como se tivesse em mãos um pincel eletrônico, cuja “tarefa”, mais que criar, mais que inventar, mais que imitar, mais que reproduzir, é documentar a própria realização das tomadas, sem regulações de montagem, sem manipulações de tempo e espaço proporcionados pelos cortes, sem interferir no andamento dos acontecimentos e da falta deles diante do quadro, uma vez ligada a câmera diante dos ambientes e dos atores. Pedro Costa pode até despir-se das convenções da mise-en-scène, mas, mais que sua referência (o casal Jean-Marie Straub/Danielle Huilet, ao qual documentou na mesa de montagem em Où gît votre sourire enfoui?), ele compõe a relação câmera/corpos/espaços como um esteta, não apenas emoldurando a luz matematicamente para deixar uma parte iluminada e outra à sombra, mas sobretudo mantendo um padrão de enquadramento e de disposição dos atores, que dá impressão de estarmos sempre tendo de olhar para o alto e um bocadinho na diagonal, como se a imagem ali fosse estabelecida com régua e compasso, milimetricamente, para depois se deixar a moldura à própria sorte, de modo a injetar sopro de vida na formatação de cada cena.

Mas, como evitar que a não-facilidade, que o investimento radical no despojamento dos artifícios, ao lidar com fragmentos de vida e de memória (e não flashbacks), não mate qualquer pulsação da imagem, não se torna apenas exposição radical de artifícios do despojamento? Se já sabíamos do caráter alienígena das obras de Costa, de O Sangue a Casa de Lavas, de Ossos a No Quarto da Vanda, agora o mistério parece ainda maior. Sim, Pedro Costa é um mistério, em seus melhores momentos, e, se no momento talvez seja apressado para fazer eleições hierarquizantes, o deslocamento de suas imagens em um festival de cinema o torna facilmente um autor à parte da produção em voga.

Aleluia!


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