in loco - cobertura do Festival do Rio

Juventude em Marcha (idem),
de Pedro Costa (Portugal/França, 2006)
por Felipe Bragança

Meu amor, eu queria te dar um filme como este


Era preciso mais tempo.
É preciso tempo para falar de Pedro Costa. Passadas mais de 3 horas do fim da sessão, Juventude em Marcha ainda está em algum lugar entre meu estômago e o pescoço, e descrever idéias em torno dele é, por enquanto, feito assim: em forma de soluços.

- Uma boa notícia para os apressados: o tempo parou. O tempo avança parado. Não como cansaço – mas como espreita (diferença central de estatuto da contemplação apaziguada).

- Uma boa notícia para os solitários: os corpos aparecem aqui como pedaços de esquinas e quinas, como objetos. Não estão sós. Ainda que estejam isolados – eles se tocam, se deitam uns sobre os outros, se comportam, se encaixam e se tocam. Se pegam nas mãos.

- Seguindo: os pedaços de esquina também são corpos. Os cortes que esperam segundos e mais segundos depois da “saída de cena” estão ali porque ângulos, vazios de parede e texturas de reboco também são pedaços de Ventura. Como seus olhos erguem paredes e indicam variações de luz e de recepção do espaço – como os feixes de luz e as frestas e os buracos nas paredes indicam.

- Porque a memória toda é um corpo que olha. Como a carta que sem ser escrita precisa ser enfiada na cabeça de Lento quase que como um sintoma. Repetida sempre, igual e diferente, como que pela primeira vez.

- Ventura retoma sua memória como um homem que acorda no escuro. A luz só aponta e pontua o movimento ou a falta dele: é a falta da mulher que coloca em cheque a aventura. O corpo de Ventura é todo ele um acontecimento cinematográfico: numa levantada de braço (“a casa tem aranhas”), numa apreensão de determinado olhar, num balançar de perna.

- A declamação e o coloquial se emaranham: o tom é ao mesmo tempo seco e viscoso – como numa reza. Os personagens parecem fazer suas preces quando falam – seja sobre a morte, seja sobre o nascimento de uma criança. Ventura digere, rumina, resiste como um animal que tem seu tempo, sua pulsação, que é como uma teimosia ou um grito de guerra.

- O filme todo é um certo afeto que é também um afeto das paredes, das sombras, das imagens vislumbradas numa parede não-branca. O erro, o ruído, o defeito, a rachadura das paredes abre as brechas para um lugar de imaginação. De liberdade. A pureza branca limita o corpo e a câmera, e o que limita o olhar aqui, limita o gostar. A câmera gosta do que Ventura gosta.

- Não há bom comportamental gráfico senão o que se exprime como força dos objetos em si. A relativização só serve aos pés de um absoluto desejoso. O rosto de Ventura desafia as linhas de força do quadro sem corpos – entrando em quadro em susto, mudança a escala, vibrando antes da composição perfeita. As paredes brancas o cercam mas ele vê aranhas onde tantos vêem espaço. Fantasmas do futuro, da mudança, da saudade.

- O filme todo é um só lugar – flexível, que habita o presente e o passado. Portugal / Cabo Verde. Pedro Costa constrói as paredes – filmar aqui é algo próximo de mapear, ou de projetar maquetes.

- “Cem mil cigarros” é a multiplicação do gesto banal. É pelo excesso e acúmulo que o usual se torna mágico aqui – é pelo uso (infiltrações,falta de pedaços, sujeira) que os lugares se tornam organismos.Ventura é um acumulo de afetos, olhares para seus filhos, ouvidos para histórias.

- A carta bonita-feia de Ventura é imutável – pode-se acrescer elementos nela, mas nunca negá-la.

- As palavras emergem dos grãos, da imagem vibrante do digital sub-exposto ou do leite branco da super-exposição. DV. Digital. A câmera que aguarda o cinema e não tanto o instala. A instalação do cinema como gesto de paciência. Paciência e imaginação – rima de gestos banais como traços do encantamento insurrecto.

- A narrativa como organização temporal de um sentimento – não como sucessão de eventos. A palavra não pelo que conta, mas pelo que ocupa do espaço. Das ruínas ou da assepsia das paredes brancas.

- Os atores, corpos, atuam como que imitando seus próprios corpos. Um encontro entre a simulação marcada e o sonho livre. Pedro Costa faz aqui um cinema de generosa invenção. Generosa porque parte de um encontro entre o que se cria como declamação e o caldo cotidiano de onde elas vêm. Não há hiper-realismo aqui, há um sentido de verdade do afeto. Um estatuto de farsa que precisa de tempo, atenção e um olhar atento aos detalhes para se dar em imagem.

- Como as falas que divagam, derivam e comentam-se em redemoinho. Como os personagens que se escondem nas sombras, voltam, parecem paredes, paredes que parecem corpos, como Ventura que ergueu a fundação Gulbekian e agora vagueia por ali como uma peça negada e perecível, como um pedaço de reboco, uma estátua, um objeto ou uma ameaça ao recorte geométrico dos planos.

- O plano final – a menina brilhando ao canto da imagem, a pequena cabeça surgindo enquanto o velho homem murmura é o signo de que nos reitera ao fim o título. Juventude em Marcha: ao mesmo tempo a força inegável do tempo, ao mesmo tempo a força inegável do novo, ao mesmo tempo uma ressonância irônica à mudança social pós-Revolução dos Cravos, ao mesmo tempo uma elegia à vontade de memória.

- Da memória como corpo criativo em marcha. Da memória não como aquilo que está pronto – mas como algo em afirmação presente. Como juventude da imagem que na vibração e no formigamento do digital, se insinua ainda potente.

- O cinema de Pedro Costa não está pronto. É um certo intuito do corpo. Da equipe leve de poucas pessoas. Dos quase 4 anos de set. Do olhar que perde tempo para ganhá-lo adiante como refluxo de vontade.

- Como essas anotações ligeiras gostariam de ser.


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