Uma Juventude Como Nenhuma Outra (Karov La Bayit),
de Vardit Bilu e Dalia Hargar (Israel, 2005)
por Cléber Eduardo

O espaço do indivíduo em uma comunidade do medo

Nos primeiros tantos minutos de Uma Juventude Como Nenhuma Outra tudo nos leva a crer que despencamos no clichê: a primeira seqüência, clínica na exposição da tensão e do constrangimento envolvido em uma operação de “revista” de moças  israelenses em mulheres árabes, baixa as cartas. Temos de cara a soldado rebelde, cansada de repetir um ritual de exercício institucional da desconfiança, e sua chefe que encarna o Estado. Duas novatas também reproduzirão por uns tantos minutos essa dicotomia (uma obedediente, outra transgressora), encaminhando o filme para um ataque maniqueísta ao Exército de Israel, e, conseqüentemente, para uma simplificação da relação do país com os palestinos: os transgressores das regras são do bem. Os mantenedores e cumpridores delas são do mal.

A coisa só não começa pior, apesar desse esquematismo aparente, porque a introdução é forte na imagem. A câmera e os cortes promovem uma dança de olhares na passagem entre os planos, revelando, desde o poderoso enquadramento inicial (da mulher à espera da revista em sua bolsa, que está sendo feita fora de quadro), uma procura pelo rosto como superfície de expressão dos personagens. Mas não fica apenas nisso. É destacável ainda uma preocupação com o ritmo, sobretudo em momentos específicos, como o da dança no hotel entre a moça obediente e um desconhecido, talvez o grande momento visual de todo o filme.

Essa plasticidade é índice de habilidade da dupla de diretoras, mas, quando se faz um filme sobre jovens com uniformes de Israel, o discurso empreendido pelas situações é central. E as aparências iniciais começam a se dissipar quando passamos a ver moças e mulheres dentro dos uniformes e não somente personagens construídos para expressar esse ou aquele segmento da sociedade israelense. Se a jovem rebelde e sua colega obediente reagem de maneiras distintas à missão cívica-militar de solicitar documentos de árabes na rua, uma e outra só se submetem a esse ritual da paranóia estatal porque não têm escolha, nunca por convicção, e, se uma se dedica à tarefa, é apenas por não querer encrenca para seu lado. Questão de personalidade mais que de um posicionamento ideológico.

E mesmo essa jovem obediente, que cumpre ordens sem questionar e sem acreditar em sua atividade, não demora para ser “contaminada”, ou seja, para ter seu lado rebelde, transgressor e desrespeitador das regras aflorado – primeiro ao seguir um rapaz na rua, depois ao experimentar um chapéu em um loja, isso depois de ser quase feita em pedaços pela explosão de uma bomba. Rebeldia individualista. O que se quer, até com insistência excessiva e banalizadora do contexto dessas experiências (Jerusalém), é afirmar a vida, digamos assim, como algo que, independentemente do terror e do medo, continua pulsando nos jovens. Afirmar o sujeito acima do lugar onde vive e de sua cidadania.

Em alguns sentidos, Uma Juventude como Nenhuma Outra vincula-se a Zero de Conduta, de Jean Vigo, e a Os Incompreendidos, de François Truffaut, fazendo o elogio, não sem ingenuidade, da rebeldia das moças. Ao matar o serviço ou simplesmente ignorá-lo, elas colocam o prazer individual acima da ordem comunitária, colocam o tédio com a atividade acima de sua problematização, seja por descrerem dos métodos de ordenamento da comunidade, seja porque carregam a inconseqüência juvenil em seus impulsos, seja porque têm o sentimento da eternidade ou uma dose extraordinária de alienação. Não deixemos essa hipótese de lado, porque, no plano final, há um sentido de tomada de consciência (pelo trauma). Consciência do que é viver em Israel.

No entanto, antes do final, salvo contratempos com a chefe e bate bocas com árabes, o cotidiano delas é mostrado no mesmo compasso de Antoine Doinel cabulando aula em Os Incompreendidos, como uma atividade prazerosa e de subversão. Há nessa valorização da vida sobre o medo uma espécie de fuga de um conflito maior contido ali naquele espaço e ignorado pelo filme: o da possibilidade ou não de se conciliar a rebeldia contra os deveres em relação ao Estado com as ameaças reais dos atentados dos palestinos. A explosão de uma bomba no local de patrulhamento da dupla de protagonistas poderia ser o estopim dessa crise nas personagens, uma crise gerada pelo choque entre os desejos de cada uma, suas obrigações cívicas, as necessidades de seu Estado e os efeitos provocados por esse Estado junto aos árabes.

Esse sentimento de xeque mate, depois de ser evitado quase a todo custo pelo filme em nome de um enfoque maior sobre a amizade de suas protagonistas tão díspares, encantadoras e imperfeitas, aparece somente ao final. Mas essa crise não será motivada por um ataque terrorista. O que a desperta, na verdade, é o ataque a um árabe, que, por se recusar a obedecer ordens, torna-se alvo da violência. Em uma seqüência que rompe o tempo da imagem com o do som, com a imagem nos mostrando as duas em um momento após a agressão, enquanto o som nos relata a agressão em si, o filme finalmente planta para depois de seu final o conflito tão adiado: depois de tratar a explosão terrorista como garoa de fim de tarde (atitude um tanto falsificadora dentro da lógica dramática, talvez em nome de um posicionamento político), nos mostra a reprodução do poder e da autoridade por parte da garota rebelde, apenas para na seqüência expor a chaga de uma cultura do constrangimento individual em nome da segurança. Um desfecho mais “correto”, por se filiar ao povo patrulhado por um Estado, mas menos espinhoso, por dar de ombros para as ameaças palestinas.


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