Karate Kid (The
Karate Kid),
de Harald Zwart (EUA/China, 2010)
por Rodrigo de Oliveira
A
hora da verdade
Logo no começo de Karate Kid vemos
o novo Senhor Miyagi, agora chamado Han, tentar capturar uma mosca
com os tradicionais hashis da comida oriental, para então
desistir da empreitada e destruir o inseto com um mata-mosca bruto
e impessoal. É uma referência enganadora ao filme
de 1984, onde o mesmo ritual se repetia: o que Harald Zwart faz
aqui está longe de significar a potência mata-mosca
do remake contra a paciência milenar original -
sobretudo porque, olhando para trás, não havia nada
no trabalho de John G. Avildesen que justificasse algum respeito
a um totem cinematográfico (um "clássico da
Sessão da Tarde"; é diferente de um clássico,
e para isso existem os filmes de John Hughes a nos lembrar o que
esse tipo de produto podia almejar).
De fato, o que este novo Karate Kid faz de mais ousado
é justamente reproduzir a lógica narrativa de 26
anos atrás e tentar encaixá-la dentro de um universo
que está obviamente transformado. Ele entra no circuito
das bobagens de verão já consciente da impossibilidade
de gerar uma iconografia, uma memória, um padrão
de comportamento (não haverá superlotação
nas classes de kung-fu; nem se verá na rua os meninos repetirem
o golpe fatal de Jaden Smith como fizemos todos no passado com
Ralph Macchio) e, ao mesmo tempo, é apelar para o ícone
e para a memória tudo o que ele pode fazer uma vez que
escolhe ser diferente da produção infanto-juvenil
média. Apelar para um tempo em que se cuidava da construção
de personagens, em que não se tinha pressa para chegar
a um objetivo uma vez que o caminho até ele parecesse tão
prazeroso, em que se confiava no mais básico apelo à
emoção espectatorial diante de todas as alternativas
de impressão barulhenta e passageira.
A mudança mais radical é a de cenário.
Na abertura do filme vemos o menino Dre (Jaden Smith) e sua mãe
se despedindo de uma Detroit cinzenta e chuvosa, com várias
placas de bancos falidos e portas de fábricas fechadas
no trajeto até o aeroporto. O destino é a China
- filmada com aquela inocência programática tão
cara ao cinema americano -, um país que cumpre, hoje, o
papel de próximo paraíso econômico que os
filmes dos anos 80 viam no Japão. É a China dos
sonhos mais loucos da comissão de turismo do Partido Comunista,
cheia da beleza ancestral da Cidade Proibida e da Grande Muralha
equilibrada com o pendor futurista do Estádio do Ninho
de Pássaro - até os monumentais engarrafamentos
de Pequim são filmados com irresistível romantismo
por Zwart.
Mais
importante que isso, essa China parece ser o lugar onde ainda
há o respeito pelo ritual da honra, pela dimensão
processual da elevação espiritual. O exercício
da guerra talvez seja nobre demais para se dar por aí,
sem controle e sem regras, e por isso retoma-se o espaço
mitológico do torneio com platéia e árbitros,
na tradição de Rocky, Falcão,
Retroceder Nunca, Render-se Jamais e O Grande Dragão
Branco. Nem os bullies aqui são iguais, e
a diminuição pela metade da idade dos jovens lutadores
também ajuda. O treinamento em massa, os grandes palcos
abertos para o exercício da luta, a mentalidade competitiva
(e, por que não, olímpica) reproduzida até
num concurso de música clássica, são todos
dados que permitem a existência praticamente idêntica
do modus operandi de Daniel-San e Miyagi sem que ele
soe anacrônico ou tolo.
A batalha não é entre o velho e
o novo, entre o puro e o impuro. Há bastante espaço
para o hip-hop modernoso, um número de dança que
reproduz Lady Gaga e um dueto final entre Jaden e ninguém
menos que Justin Bieber. Essa coloração da banalidade
está plenamente assentada na cultura americana (a ponto
da teoria do Chi interior ser resumida numa referência a
Star Wars). Mas quando a coisa aperta, Karate Kid
não tem medo de recorrer ao que lhe parece mais essencial
neste tipo de conto de superação do sujeito inferior:
é quando veremos Jackie Chan explorando satisfatoriamente
um pendor dramático que ainda não o víramos
demonstrar, é quando sai o lixo pop e entra o AC/DC estridente
na banda sonora. O que a China traz de novo é a experiência
do tempo, a calma para se testemunhar uma evolução
(são duas horas e vinte minutos de duração,
mas elas passam voando). O resultado disso é um herói
simpático não por automatismo, mas por construção,
por costume. Mesmo que o torneio final esteja repleto de uma agilidade
atrapalhada da câmera, de golpes moldados no computador
da pós-produção e haja telões digitais
para mostrar a repetição instantânea das lutas,
quando o pequeno Dre é nomeado campeão, contra todas
as adversidades (é um garoto negro cercado por chinezinhos
mal-encarados e, por Deus, essas crianças se espancam com
um vigor que chega a ser imprudente numa era de classificações
indicativas tão rigorosas), há um sentimento genuíno
de justiça em cena. E estão aí três
palavrinhas difíceis de se imputar a esse tipo de produto.
Setembro de 2010
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