O
Caçador de Pipas (The Kite Runner), de Marc Forster (EUA, 2007)
por Cléber Eduardo Os
miúdos do modismo
Nem é preciso ver qualquer imagem
de O Caçador de Pipas, direção de Marc Forster, para constatarmos o oportunismo
e conveniência do projeto. O best seller de filão “islâmico” do mercado
de livros pós 11 de Setembro, assinado pelo médico afegão Khaled Hosseii, parece
ser a matéria-prima ideal para um produto do momento, que chega ao cinema quase
como um “extra” audiovisual do livro. Existe nesse filão um apelo “buraco na parede”
(nada a ver com o conceito de Cezare Zavattini em seu programa para o neo-realismo)
– em parte porque essa parede, a grosso modo, era intransponível a olhares externos.
Desde 2002, qualquer dramaturgia “sobre” a vida em regimes
fechados, sobretudo islâmicos, passou a ser tratada como códigos de revelação
de segredos. Quanto maiores as atrocidades e opressões narradas maior também a
munição sensacionalista para o marketing e a intensidade da experiência da leitura.
Revelar informações ou produzir imagens sobre vidas nessas sociedades fechadas
ao mundo sempre tem apelo. Nesse sentido, o alemão A Vida dos Outros, com
sua narrativa ambientada na Alemanha Oriental regida pelo sistema de controle
comunista, é outro filme do mesmo filão, não sendo coincidência o fato de ser
contemporâneo, no circuito comercial, de O Caçador de Pipas. Se
o buraco na parede de Zavattini era a ausência de dramaturgia, de modo a se captar
o miúdo da existência cotidiana, ou o ordinário de suas partículas, o buraco na
parede desse filão, o de O Caçador de Pipas e A Vida dos Outros,
é o contrário do ideal zavattiniano, porque trabalha sempre com a noção
de extraordinário e sensacionalismo. O que o buraco nos permite ver é aquilo que
estava escondido pela parede. Marc Forster dirigiu um filme para a moda, um derivativo
da moda, mas não responde a uma pergunta que, diante desse contexto, torna-se
inevitável de ser endereçada ao filme: haverá expressividade cinematográfica para
além do oportunismo? Não responde porque não tem resposta.
Marc Forster não parece verdadeiramente preocupado em criar uma narrativa cinematográfica
justificada pela própria existência, mas sim em produzir imagens para dar conta
de um material ainda muito fresco na memória dos leitores e, além disso, atender
ao freguês sem conhecimento do livro com um resumo audiovisual capaz de levá-lo
a entender as ramificações da história. Essas missões inibem o diretor, que, em
alguns momentos, demonstrou abertura para experimentações (como em Gritos na
Noite), assim como força na construção de cenas (A Última Ceia, Mais
Estranho que a Ficção). Forster
não é um quadrado. É irregular por descontrole de suas tentativas. Mas o descontrole
em O Caçador de Pipas, longe de ser gerado pela aventura de se arriscar
a fazer algo com assinatura, surge da dificuldade em acertar, em fazer a coisa
corretamente, dentro de certos protocolos esperados para se atender a demanda.
Tasca lá uma fotografia em tons amarelados, mais que amarelos, com uma palidez
sóbria e seca. Organiza-se os planos mais ou menos de acordo com as regras de
organização. E somente em uma seqüência, dividida em duas partes no filme, Forster
nos lembra que é um cineasta, fazendo a paisagem de São Francisco, vista pela
janela do protagonista durante um telefonema, tornar-se próxima da paisagem do
Afeganistão, com uma tonalidade de deserto ou ao menos de areia pelo artifício
visual. Forster já deixou claro que, em projetos de comunicação
pensada para ser ampla, dá uma desafinada. Não consegue organizar os elementos
com os quais narra de forma equilibrada ou com energia – o que, para seu próximo
filme, 007 – Quantum of Solace, pode ser um problema. Em seus trabalhos
mais livres, mais independentes, sai-se melhor com sua coragem, com seu desejo
de fazer a seu modo, mesmo quebrando alguns pratos no processo. Não se dá para
um quebrador de pratos a tarefa de lustrar louças. Pois a louça de O Caçador
de Pipas termina cheia de resíduos. Se ela já não é exatamente fina, se carrega
em sua composição uma vulgaridade dramática inseminada pelo clichês novelescos
de apelo internacional, Forster não procura sequer polir essa camada suja, de
acúmulo de convenções, e somente ilustra o roteiro saído do best seller.
Se alguma força existe em algumas situações, muito se deve a presença do ator
Homayoun Ershadi (nosso conhecido de Gosto de Cereja, de Abbas Kiarostami),
que parece ter a dignidade acima do filme, mas nunca descolada de seu personagem,
que nos está sempre firme mesmo quando colocado sob questão pelo filme. O
Caçador de Pipas envolve, tal qual Vida dos Outros, vidas pessoais
e processos históricos. Lida com o efeito do poder entre as classes/castas e com
a redenção de manchas do passado – que será viabilizada no inferno islâmico, mas
terá seu coroamento/benefício na América, como já se insinua nas imagens nos quais
os dois personagens centrais da primeira metade deliciam-se com filmes americanos.
Somente na sociedade americana as diferenças de origem serão deixadas de lado
e personagens situados em distintos segmentos sociais serão convertidos literal
e metaforicamente em gente do mesmo sangue. Iguais. Se há personagens coadjuvantes
que atendem a uma imagem de pobre passivo, o protagonista e seu pai, por diferentes
caminhos, expressam a superioridade e arrogância da elite com atitude superior.
Poderíamos falar em narrativa de mea culpa se houvesse alguma culpa em
jogo. Há o motivo para a culpa, a consciência dela, mas não sua expressão. Portanto,
a elite, na imagem e na instância, porque parece óbvio que o filme nos coloca
com a elite, tem consciência vazia. O Caçador de Pipas
acompanha algumas fases na vida de um escritor afegão, Amir, de sua infância em
Cabul a seu exílio em São Francisco (durante a ocupação soviética), mostrando
a complexa relação com um amigo no passado, Hassan, e seu retorno ao país de origem
para retomar esse passado, agora sob uma nova perspectiva pessoal e em um outro
contexto histórico: o regime dos Talibãs. Durante seu tour cheio de adrenalina
pelo país natal, alguém lhe diz que sempre foi turista ali. Portanto, o retorno
é descoberta, não mais do país anterior à chegada dos soviéticos, mas daquele
que se seguiu aos comunistas, controlado pelos religiosos ortodoxos e assassinos.
Essa descoberta tem pontos de contato com outro filme contemporâneo, Armênia,
do francês Robert Guédiguian, que narra a procura de uma médica por seu pai no
país do titulo. A mulher do filme conhece parte do funcionamento clandestino da
sociedade armênia, descobre as raízes de seu pai, mas sai de lá sem idealizar
o lugar dos ancestrais. Em O Caçador de Pipas, ao
retornar, Amir não chora o exílio. Quer somente sair de novo do inferno e ser
um afegão em São Francisco, porque, como explicita seu pai ao pegar um pouco de
areia antes de partir do Afeganistão, a terra pode ser carregada com ele onde
estiver. Há, no começo, uma desconfortável fronteira entre amizade, poder e servilismo
na relação de Amir com Hassan, filho de um empregado do pai de Amir, que se destaca
em atividades físicas, tem alguma intuição mística e faz tudo o que o chefinho
camarada solicita, além do que ele não solicita. Pois o chefinho camarada, Amir,
depois de juras mútuas para selarem o pacto de amizade eterna, omite-se quando
Hassan, para servi-lo, é sexualmente violentado. Foge e se cala. O
agressor é um adolescente que, anos depois, será um dos líderes talibãs. Estava
no sangue desde cedo. Após testemunhar a agressão, Amir torna-se um déspota dissimulado,
agindo contra o amigo Hassan sem assumir seus atos, talvez para afastar o motivo
de seu tormento, a prova de sua vergonha. Antes covarde e mariquinha, Amir se
torna um escroto, embora, pela maneira de tratar as coisas, Forster não o veja
com negatividade, mas como fruto de circunstâncias, entre as quais a admiração
do pai pelo amigo, que se contrapõe a fragilidade e passividade de Amir. Se o
agressor de Hassan mantém-se agressor como talibã, Amir mostra outro comportamento
se comparado ao da infância, quando sua sensibilidade, fragilidade e insegurança
são vinculadas a seu deslize de caráter, insinuando na combinação de situações
que a arte do personagem é o refúgio de sua covardia, enquanto o modelo de caráter
é o do menino do povo, ignorante em formação, mas ortodoxo na defesa de princípios.
De qualquer forma, a arte transforma, segundo o percurso de Amir. Ele passa a
ter coragem. Já seu inimigo transformado em talibã continua se impondo pela força.
Não a dele, isoladamente, mas de sua liderança. É o confronto entre o grupo e
a individualidade. A arte de Amir, em linhas gerais, ensina-o a se impor. Mesmo
sob riscos. Mas
a consciência do protagonista não é afetada em nenhum momento como algo pelo qual
o filme se interessa. E quando Amir retorna ao Afeganistão, para resgatar o filho
de Hassan, terá de sofrer um pouco, ser salvo pelo menino, depois lhe dar um quarto
confortável, em um país livre, onde empinar pipas, como Amir fazia na infância
em Cabul (as piores imagens do filme), não é proibido por homens de barba. O
Caçador de Pipas perdoa o personagem sem nunca tê-lo acusado, sem o personagem
manifestar arrependimento ou um conflito de fato. Se quer ver longe seu amigo,
é porque, para Amir, só a distância o levará a esquecer, não de Hassan, mas da
incapacidade de se sacrificar por ele. O percurso do personagem cumpre um percurso
de dramaturgia. A questão é que, em vez de conflitos, há somente contingências.
Talvez porque há uma pressa em se resolver logo as situações, talvez para tentar
dar conta de um volume significativo de cenas do livro, talvez porque se priorize
o resumo à retenção na relação com as experiências. E com
os lugares. As imagens dos espaços no Afeganistão e no Paquistão estão sempre
na correria, de passagem, pondo e tirando o olho para construir um mosaico de
fragmentos visuais de um lugar, com imagens, sobretudo, dos índices de pobreza
e arcaísmo, como cabeças de animais no chão de uma feira ou um ritual de apedrejamento
de mulher no intervalo do futebol. Ao mostrar essas imagens-síntese, assim como
fragmentos com o intuito de revelar algo da vida no Afeganistão e no Paquistão
em alguns poucos segundos, Forster filma como um turista ao mesmo tempo fascinado
e com receio dos ambientes pelos quais passa sem sentar. Sem entender, quem sabe.
Sem sentir, talvez. Janeiro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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