O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno),
de Guillermo Del Toro (México/Espanha, 2006)
por Francis Vogner dos Reis

Elogio da desobediência

Como já foi dito nessa mesma revista sobre A Dama na Água, a fábula cinematográfica hoje em dia se apresenta como um sub-gênero melancólico do cinema fantástico porque existe em um tempo em que a capacidade de fabulação do cinema não consegue mais se fechar em uma moral reconciliadora, não consegue restituir o que foi perdido e o retorno à inocência é completamente inviável. Por isso, ela é sempre mais definida pela contradição do que por uma lição moral. Pode-se dizer isso também de O Labirinto do Fauno – ainda que existam outras questões relevantes no filme de Guillermo Del Toro que não podem ser ignoradas e que não se localizam propriamente no terreno da ficção fabular.

O Labirinto do Fauno se passa na Espanha da década de 40, sob a ditadura fascista de Franco (portanto em um episódio histórico verídico). Um oficial, o capitão Vidal (Sergi Lopez), tem como obsessão combater um grupo de rebeldes escondidos na floresta, ao mesmo tempo em que recebe sua nova esposa Carmem (Ariadna Gil) – que está grávida – e sua enteada de dez anos Ofélia (Ivana Baquero), que carrega consigo livros de contos-de-fada. Ofélia descobre um labirinto e uma fada, que a conduz a uma Fauno, que revela ser ela uma princesa de um outro mundo que voltou à vida, e agora tem a oportunidade de retornar ao mundo mágico – mas para isso, precisa realizar provas severas e obedecer todas as orientações que lhe são dadas pela Fauno.

É claro que a luta de Ofélia por entrar no mundo fantástico é uma tentativa de fuga da convivência com o mal na figura do capitão Vidal e de toda sorte de desgraças no rastro do regime fascista. Certamente uma das grandes questões aqui é sobre a função do fantástico em meio ao horror de uma realidade que não dá brechas para acreditar no triunfo dos fracos, na transformação radical de uma situação, na vitória da humildade do “Bem” contra a astúcia do “Mal”. Algo que torna O Labirinto do Fauno singular entre os filmes fantásticos mais recentes é justamente a sua crueldade: raramente se vê em um filme desse gênero um universo tão cruel, tão sem pudores em filmar a violência crua sem nenhum recuo. Toda atitude violenta é colocada no meio do plano, nunca fora dele como faz a maioria dos filmes. De Toro recusa o cinismo de ocultar tais coisas, de transformar a imagem da crueldade (e da morte) em uma estreita questão moral, porque nesse caso específico, colocar essas coisas fora de plano seria no mínimo covarde. A luz de Labirinto do Fauno é tão dura e cruel quanto a carne sendo rasgada e os tiros que atingem os corpos, e os diálogos do capitão Vidal com os guerrilheiros nas sessões pré-tortura são muito mais fortes e intensos do que qualquer cena de tortura.

Esse universo não poderia existir de outra maneira e Del Toro saberá como “pintá-lo”, já que a luz, tanto a luz esverdeada da Espanha de Franco, quanto a dourada, do mundo do Fauno, têm, mesmo em suas diferenças, uma melancolia e também uma crueldade que irá ampliar a força de cada escolha do diretor. A crueldade da “realidade do filme” é espinha dorsal aqui: não é denúncia, nem sensacionalismo, mas cerne do projeto estético de Del Toro que realiza com este filme um de seus mais belos e corajosos trabalhos. Toda essa crueldade não encontra consolo, e as criaturas fantásticas e a história da princesa fugida do reino subterrâneo, que, em princípio, podem parecer uma oposição ao contexto violento e despótico, não se mostram nunca como uma solução à dor e à solidão de Ofélia. Mas, se não podemos nos guiar totalmente pelo juízo da oposição Bem-Mal, Fauno-Capitão Vidal, Mundo encantado-Fascismo, por outro lado não é questão também de dizer que toda ordem é semelhante (e autoritária).

Já no prólogo ouvimos a narração de uma fábula que diz que a princesa desobedeceu às ordens de seu mundo e fugiu. Na personagem de Ofélia temos a princesa que revive e tenta voltar a esse mundo por meio das provas empregadas pelo Fauno, mas ao mesmo tempo, tem de arcar com as consequências deste outro mundo em que está presa, o da Espanha durante a guerra civil. Nesse mundo temos a empregada do capitão, Mercedes (Maribel Verdu), que também se coloca em risco ao ajudar o grupo de guerrilheiros junto a um médico (Alex Ângulo) que tem livre acesso à casa do oficial, mas se engaja na causa dos rebeldes. Ambos também vivem em um limiar, entre a obediência e a abnegação.

A tônica da ação dos personagens e desse trânsito entre realidades (e mundos) diferentes é uma só: a desobediência. É o espírito da desobediência que garante a autonomia e liberdade, não uma oposição entre ordem-justa e ordem-injusta. A desobediência de Ofélia, por exemplo, ao comer uma fruta que o Fauno a proibiu enquanto realiza uma prova, mina em primeira instância suas possibilidades de retornar ao mundo mágico. Daí em diante o Fauno a abandona e ela precisa fazer suas escolhas sozinha – caminho que a levará a um reencontro com o Fauno e a uma desobediência final.

Diferente da leitura usual da mitologia religiosa de Adão e Eva, em que a desobediência (o ato de comer o fruto, como aqui) teve como fim o sofrimento e o abandono de Deus, o que é reforçado em O Labirinto do Fauno é a originalidade e a liberdade de desobedecer, mesmo que as vicissitudes dessa escolha sejam imprevisíveis e até mesmo cruéis, já que obviamente a desobediência existe contra uma autoridade instituída. Quando o capitão Vidal questiona o médico sobre suas atitudes, o médico diz que “a obediência sem questionamento é coisa pra gente como você”. Fazer uma oposição da desobediência à crueldade, leva O Labirinto do Fauno a um patamar superior dentro da obra de Del Toro, numa síntese do que fez de melhor dentro e fora de Hollywood.


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