debate crítico
A Dama na Água (The
Lady in the Water),
de M. Night Shyamalan (EUA, 2006)
editado por Eduardo Valente
O que segue logo abaixo é uma série de primeiras
reflexões sobre um filme (que ainda vai dar muito pano para manga).
Propusemos que todo redator que assim quisesse, nos enviasse suas
principais idéias sobre o novo filme de M. Noght Shyamalan, indo
de um parágrafo a um máximo de três, sem tentar dar conta do todo,
mas sim dos aspectos que mais lhe chamem a atenção. Diferentemente
dos Diários da Redação, não temos aqui um debate com troca de
idéias: cada redator mandou o seu texto sem ler nenhum dos outros.
A idéia encampa, assim, possíveis ecos, repetições, ou discordâncias
radicais. E o debate propriamente dito se dará (ou não) agora,
com o leitor e entre nós mesmos, a partir da publicação do material.
Em Cinética não existe o famoso quadro de estrelas. Isso se dá
menos por uma descrença no método, e mais por acharmos que já
existem muitos deles por aí, o que diminui o sentido de termos
aqui mais um. No entanto, um problema que se criou com isso é
a possível idéia de que há uma “unidade de pensamento”
dentro da revista, a partir da publicação de uma só crítica dos
filmes. Vale esclarecer que deixamos sempre em aberto aos redatores
a possibilidade de publicarmos quantas críticas surgirem de cada
filme – mas, infelizmente, é raro o tempo hábil permitir muito
mais do que um texto, e sempre preferiremos ter ao menos um do
máximo de filmes, do que vários textos sobre o mesmo filme.
No entanto, também reconhecemos que há filmes
especiais, filmes que mobilizam os leitores e a redação de uma
maneira diferente. A Dama na Água certamente é um destes
filmes – já o sentíamos antes da sua estréia, e tivemos certeza
pelo número de acessos à crítica do
filme aqui publicada (muito mais do que qualquer outro filme
na sua primeira semana na revista). Por tudo isso, escolhemos
o filme para apresentar ao leitor uma nova forma de nos aproximarmos
dos títulos que nos causam mais reações fortes e imediatas (a
grande maioria da redação já havia visto o filme na sua primeira
semana em cartaz, algo nem tão freqüente quanto se possa pensar).Entre
a dureza simplificante de uma cotação e a duração longa de um
texto-ensaio de cada redator, optamos pelo meio termo.
Ah, sim: o debate (que, vale esclarecer, é publicado pela ordem
alfabética e não por encadeamentos de argumentação)
marca também a estréia na revista de nossos dois
novos redatores, Lila Foster e Lucas Keese - ambos vindo de experiência
anterior no Cine Imperfeito. Nas próximas semanas teremos
mais duas estréias (Diego Assunção e Tiago
Mata Machado), tornando o time da revista maior e melhor - o que
esperamos que nos dê condição de dar conta
do cada vez mais excessivo universo audiovisual à nossa
volta.
Bem-vindos sejam eles.
* * *
Cléber Eduardo
A Dama na Água é o exercício de militância
de um ficcionista pela fantasia como ritual de fé e crença. Se
a investigação proposta pelo filme carrega uma constante e bem
humorada reflexão sobre a codificação ficcional, com suas movediças
implicações semânticas, os letreiros do início já estabelecem
um território de magia antes de qualquer imagem nos ser apresentada.
Sendo assim, não há enrolação: o registro nos é dado de antemão.
Tem-se de pegar ou largar, sem meio termo – porque, antes de mais
nada, reivindica-se aqui a crença na fabulação. Para os personagens,
que nada sabem do letreiro inicial a nós mostrado, há um momento
de revelação (como em O Sexto Sentido e Os Sinais).
Eles precisam lidar com a inserção do absurdo em suas vidinhas
medíocres.
E
é nesse ponto que, diferindo de muitos filmes com a mesma premissa,
A Dama na Água escancara-se: todos os personagens, dos
coadjuvantes aos principais, passando por figurantes quase sem
voz em cena, acreditam na magia, sem titubear, e reúnem-se para
salvar uma figura da fantasia. Todos querem agir por algo maior,
com um tanto de poesia em sua violência (enquanto na tevê noticia-se
a guerra no Iraque). Há um desejo de crer entre os personagens.
Shyamalan chega assim a seu filme mais autoreflexivo. Certamente
o cineasta mais convicto na implausibilidade da fantasia, no fantástico
ou no misticismo levado a sério, o diretor aqui parece tanto continuar
com A Vila como dar meia volta. A continuação está na condensação
do espaço em uma comunidade (um prédio), no trauma com a violência
como motivação de “isolamento”, na relação com a criatura monstruosa
agora escondida na grama do jardim (não mais na floresta). No
entanto, ao contrário de A Vila, que começava no “absurdo”
para depois revelá-lo como farsa, agora o absurdo se instala na
normalidade (nem tão normal assim). E, uma vez inserido o que
é de fora da lógica, não existem limites para os horizontes de
Shyamalan. Ele encara o patético sem medo de o sê-lo.
É impressionante sua ao mesmo tempo simples e
elaborada estratégia de transformação de situações banais em momentos
tensos. Shyamalan corta pouco, acredita no poder do plano enquadrado
com precisão, investe no extracampo como força dramática (não
como “marca de estilo”), assim como não abre mão de explorar a
mudança de lentes. Porém, se parece ser incapaz de filmar uma
imagem medíocre, que não carrega nela o depósito de seu talento
para recortar um espaço e preenchê-lo com o som (diegético ou
não), ele mais uma vez (retornando a seu limite antes de A
Vila) se mostra melhor cineasta que roteirista: na hora de
fechar as portas abertas durante a narrativa, e de encerrar a
habilidosa construção de tensão e expectativa, atrapalha-se de
maneira frustrante, terminando seu filme com as imagens e situações
mais fracas de todo o relato. Shyamalan permanece brilhante enquanto
promete, enquanto nos faz aguardar, mas se lambuza quando a espera
acaba. O que não esvazia minha empolgação com seus momentos felizes.
* * *
Eduardo Valente
A Dama na Água é um daqueles filmes que
é muito fácil derrubar, se assim o interlocutor desejar: basta
que se renegue todas as premissas que Shyamalan constrói para
o filme já nos seus créditos com desenhos, e voilá, o filme
se desfaz como um castelo de cartas. Como aliás também é fácil
creditar uma “ausência de profundidade” nas questões com que Shyamalan
se defronta ao longo da carreira: fé, um mundo mágico para além
dos olhos, redenção – em suma, nada que o homem já não venha explorando
há séculos (ou, como diria o crítico Manny Farber no filme: “não
existe mais algo chamado originalidade”), e será fácil dizer que
o cineasta não traz nada de novo ao debate. Me parecem falsas
questões, no entanto – das quais Shyamalan se mostra extremamente
auto-consciente neste filme, até como reação ao bombardeio crítico
que sofreu com A Vila (e que, curiosamente, se repetiu
agora, até maior, nos EUA).
Porque
a única verdadeira questão do cinema de Shyamalan (e a que explica
o fascínio que ele pode causar naqueles que se desarmarem) é a
fé que ele tem no cinema como ferramenta de comunicação e maravilhamento.
Mais do que isso, no poder do simples fabular, do contar uma história
– e, não por acaso, este filme se resume ao desejo de salvar uma
personagem de nome Story. E, menos por acaso ainda, Shyamalan
se escala como o personagem que pode começar uma mudança no mundo
através daquilo que escreve. O que tem um tanto de brincadeira
(não perceber, aliás, o humor rasgado que Shyamalan insere em
todos os seus filmes, é não entendê-los), mas um tanto de desafio
também (algo como um “sim, eu acredito que é importante fazer
os filmes que faço”).
Por isso tudo, este filme pode ser considerado
como um autêntico filme-tese, onde Shyamalan parece querer falar
por toda sua obra anterior (e até posterior). Trata-se de uma
declaração de princípios, tão mais pertinente por ter sido o filme
que fez um estúdio de cinema romper com ele, e pela já mencionada
incompreensão crítica (intolerante mesmo) que sofreu. É fato que,
como toda declaração de princípios inflamada (porém incrivelmente
doce, como tudo na obra dele), o filme perde o tom aqui e ali
– como se a garganta engasgasse no meio de um discurso mais emocional
e a articulação não saísse precisa. Porém, como em toda exposição
apaixonada e sincera de uma profissão de fé, é difícil segurar
as lágrimas no final. Ou, pelo menos para mim foi.
* * *
Felipe Bragança
O que impressiona em Shyamalan é a capacidade
(e o jogo) de instalar sua verdade profética/mística nos filmes
por dentro da linguagem cinematográfica – e não como objeto a
ser declamado pelo que ele filma. Não há divisão metafórica no
que ele faz: há signos e símbolos que nos remetem a afetos que
estão ali não como alegoria do real, mas como real propriamente
revivido, em seu canto de liberdade. Esse foi um elemento que
me decepcionou um pouco em A vila: a construção do mito
ali como farsa propriamente dita e alegoria social/existencial.
Quando em Sinais, ou em Corpo Fechado, o mito e
o real são indissociáveis é que a grande beleza do cinema dele
se dá.
Em A Dama na Água ele leva ao máximo esse
sentido de mágica cinematográfica, pegando um roteiro fabular
que ressoa a onda mítica Senhor dos Anéis/Harry Potter
desse começo de milênio, só que filmando em toada hithcockiana,
com jogos de tempo dignos de um Antonionni ou as gags físicas
de um Tati. Esse encontro entre o olhar cadenciado dos gestos
e eventos, e a engrenagem mítica do cinema, enacntam na obra dele
como os de um fundador de desejos renovados, um pós-Walt Disney
refazendo o trajeto das fábulas do infantil para o cruel/assutador,
do clichê da afabilidade para o lugar do mistério não como sublimação,
mas como resistência afetiva, misturando elementos de cinematografia
“B” com elegância e uma contemplação instigante.
Contemplação
talvez seja, afinal, um dado importante e diferenciado no cinema
dele: não uma contemplação apática da vida como ela é, mas a contemplação
crítica e criativa em que a observação dos pequenos gestos faz
parte de um jogo superficial e artificial para a construção do
maravilhoso. A capacidade de reinvenção do real, aqui, começa
pelo olhar lúdico e cômico com que ele brinca de tratar o imaginário
com a mesma carne do real. É essa espécie de cinismo doce, de
picardia de narração, que faz do filme uma fabula que pode incomodar
quem procure a narrativa fabular como plataforma da sublimação
crítica, ou para quem procure no cinema de invenção um olhar que
se prenda ao sentido do real como aquilo que não foge do cotidiano
ou do socialmente cirstalizado como tópico relevante. Acabar com
o mundo do real é também acabar com o mundo da fantasia; acabar
com o mundo da fantasia é dar um golpe no olhar que
vê as coisas como são. Em um panorama cultural reiterado pelo
sentido ideológico da apatia em contraponto a utopia, Shyamalan
avança seu discurso onde coisas são como se narram ou como são
narradas. O cinema como um sentimento novo de como estar e narrar
o mundo.
* * *
Kleber Mendonça Filho
Não
quero me alongar pois A Dama da Água é para mim como um
peido inodoro, que só conseguiu me estimular a partir do quão
lindo e cheio de possibilidades era o seu ponto de partida ("Sereia
numa piscina suburbana!" – muito bom). Isso talvez explique
a minha decepção finda a sessão. Também não me ajudou muito ter
visto em maio uma fábula que me tomou de assalto em vários sentidos,
obra também de um autor do fantástico: El Laberinto del Fauno,
de Guillermo del Toro. Shyamalan me chama a atenção como uma curiosidade,
como o único autor de blockbusters lentos e que falam pausadamente
(Cor...po... Fe...chado...) da Hollywood moderna. Isso é uma curiosidade
que continuarei acompanhando, levando em consideração o panorama
comercial americano e o alto fator déja vú dos seus temas
e tons, reprocessando Rod Serling e Steven Spielberg de uma maneira
que me irrita pessoalmente – curioso que sempre gostei de De Palma
revendo Hitchcock, talvez pela violência gráfica que Hitch não
teve tempo de mostrar. Me chama a atencão também Shyamalan construir
uma obra que aborda a vida, a morte, o medo e o ser humano num
padrão calculadamente PG-13, preocupação que os autores que admiro
(Eastwood, Lynch, Cronenberg, Tarantino, De Palma e até mesmo
Spielberg) felizmente não têm.
PS: gosto muito de A Vila.
* * *
Leonardo
Mecchi
A Dama na Água
é uma compilação das principais questões trabalhadas por Shyamalan
em seus filmes anteriores: a necessidade do ser humano de compreender
a verdadeira natureza de sua existência (O
Sexto Sentido), de descobrir seus poderes ocultos
(Corpo Fechado), reencontrar
a fé (Sinais) e compreender
que é impossível isolar-se do medo ao perder aqueles que amamos
(A Vila).
Embora
se pareça com uma inocente história de ninar, estamos na realidade
em um cenário sombrio, quase apocalíptico: o homem deixou de escutar
as forças da natureza, os personagens do filme encontram-se isolados
do mundo exterior no condomínio/bunker, a guerra está presente
continuamente através da TV e do rádio e uma tempestade iminente
se faz sentir ao longo de todo o filme. Nesse sentido, Story surge
como uma espécie de Cristo, um ser redentor disposto a sacrificar
de maneira altruísta sua vida pelos habitantes daquele lugar e
que, com sua presença, consegue despertar o que há melhor em cada
um e planta uma semente que irá salvar a espécie humana. Reforça-se
assim o caráter religioso da obra de Shyamalan.
A Dama na Água
é também uma parábola sobre o contar histórias. O próprio filme
remete a isso, mostrando suas estruturas, se construindo conforme
o vamos assistindo, como se o diretor inventasse a história conforme
a vai contando. Há também um grande enfoque naquele que atua como
intérprete entre a história e seus ouvintes: a jovem garota asiática
(que serve como ponte entre sua mãe e Cleveland), a criança (que
lê mensagens ocultas em caixas de cereais) e seu pai (que faz
o mesmo nas palavras cruzadas), a irmã do personagem de Shyamalan
(que interpreta os sinais de Story) e o próprio personagem de
Shyamalan.
* * *
Lila Foster
Com
A dama na água, Shyamalan se configura claramente como
um cineasta munido de um projeto. Entre a fé e a política, a idéia
de salvação perpassa todos os seus níveis e essa só pode ser conquistada
através da comunicação entre os homens. O uso das palavras funcionará
como veículo da cura, do engano, da revelação do mito, da transformação.
Os exemplos são inúmeros: a lenda narrada no início, o encantamento
pelas revelações de Story, uma senhora chinesa contando uma lenda
ancestral sendo traduzida pela filha, a confissão dos traumas,
as palavras cruzadas, o esquema arquetípico do crítico que se
mostra estanque no decorrer da estória, o escritor personificado
por Shyamalan responsável por um livro que transformará a humanidade.
Inevitável pensarmos na própria instituição do cinema como grande
veículo de comunicação da contemporaneidade e nos questionarmos
acerca da capacidade que esse pode ter na mudança do olhar, principalmente
quando inserido no molde das grandes produções norte-americanas.
Qual é o projeto de Shyamalan afinal?
* * *
Lucas Keese
Não gosto muito dos filmes de M. Night Shyamalan
– embora reconheça algumas de suas forças sempre saí deles com
a sensação de um "filme mediano", mistura dos encantamentos
e limitações de seu "setor" na indústria americana.
Mas, somando algumas características, no mínimo originais, de
seus filmes anteriores, dá pra notar em A Dama na Água
de maneira bem mais explícita - pelo menos me chamou a atenção
neste - a enorme crença que ele tem nesse cinema, ou melhor, na
sua concepção de narrativa cinematográfica.
Citando
rapidamente: A própria dama que se chama Story, a suposta mitologia
oriental (cuja narradora exige que Cleveland comporte-se como
criança para ser merecedor de sua transmissão oral – e não seria
um pouco isso, no bom sentido, o que o diretor pede do público?);
mais pra frente, quando o homem isolado e pessimista renega o
misticismo do ritual de cura como algo infantil etc, ele é repreendido
pela garota oriental que enfatiza a necessidade de crença na fábula,
na narrativa, frente à realidade desencantada do mundo; a futura
"superação" dos conflitos mundiais que seria fruto de
um livro, não uma narrativa exatamente, mas idéias, numa prática
que tem relação com o antigo hábito dos homens, segundo a mitologia,
em "ouvir". Vários outros exemplos giram em torno dessa
idéia, que é a idéia central da mitologia: uma comunicação necessária
(a antiga comunicação entre os seres e a atual busca por um "receptáculo"),
um desvendar de sentidos, de papéis, em que o aprender a "ouvir"
se aproxima mais de uma apreensão pela fábula, pelo fantástico,
mesmo que este derive do prosaico, como o menino que extrai sensações
e significados das ilustrações da caixa de cereal. Mesmo essa
ênfase chamando minha atenção no filme, essa crença nas narrativas
(e como o cinema dele decorre disso), mesmo assim não me comovo
muito com essa crença – talvez pela idéia de narrativa que venha
junto com ela.
Algo que eu precisaria pensar mais, e que talvez
fosse interessante de discutir, seria procurar o que de fato preenche
essas narrativas, de quem são esses dramas? Como esses dramas
desenham o mundo e os sujeitos dos quais se originam? A sensação
que tenho é que Shyamalan é muito simplista no que remete às questões
fora da tela – mas, por ora é só uma sensação.
* * *
Paulo Santos Lima
A Dama na Água é um filme-manifesto. Seja
pela militância a favor da crença numa narrativa (a fabular, a
ficcional, que tanto diz respeito ao mundo “real” que existe fora
da tela como, sobretudo, a um tipo de cinema cujo maior cineasta
é o próprio M. Night Shyamalan), seja pelas dificuldades em se
estabelecer esse jogo narrativo no mundo atual, descrente e resistente
a fábulas.
Um
filme-divã, portanto, e que, como tal, é bem conveniente para
o seu autor, que aqui problematiza (vigorosamente, em ótima mise-en-scène
e decupagem) o seu processo criativo, transmutando-o em tema.
Mas, ao mesmo tempo em que cria imagens com precisão extraordinária,
Shyamalan acaba recorrendo a um certo figurativismo metafórico
capenga para também falar – egocentricamente – de sua relação
com o sistema de produção norte-americano, para o qual, bem sabemos,
um criador como Shyamalan causa grande cefaléia. Algo que parece
um tanto reles para alguém que fizera uma obra-prima como A
Vila, que desnudava agudamente a fábula como um instrumento
de mitificação política.
A Dama na Água é sua continuação, também
com o universo fechado de um condomínio abrigando pessoas bem
descrentes das fabulações que anestesiam as doenças do mundo moderno.
Mas, se A Vila revelava, A Dama na Água apenas constata.
Um filme mais importante para o cinema, uma vez que põe às claras
a crise de um dos maiores cineastas atuais, mas alquebrado na
defesa tanto pueril de algo que, no filme anterior, serviu para
uma discussão política e para o cinema. No caso de A Dama na
Água, Shyamalan volta a um ideal meio O Sexto Sentido,
menos sólido quanto argumento temático-imagético e bastante equivocado,
para manter na sobrevida um discurso coerente para sua obra. Para
tal, Scorsese fez melhor ao perceber que seu cinema estava sob
xeque-mate e saltou para um novo conceito autoral. Notável, sem
dúvida, A Dama na Água é o condomínio fechado para o Shyamalan
autor.
* * *
Pedro Butcher
Procurei não ler muita coisa sobre A Dama
na Água antes de vê-lo – e não me arrependi.
Cada vez mais os filmes estão cercados de uma pré-promoção que,
em geral, atrapalha esse primeiro impacto. Várias vezes me
peguei com os olhos cheios d'água vendo A Dama na Água,
o que não acontecia há tempos. Foi uma surpresa atrás da
outra, tanto de momentos de encenação como de atuação
(Paul Giamatti, principalmente).
Demorei
um bocado a me render ao talento de Shyalaman. Gostei bastante
de O Sexto sentido, achei Corpo Fechado interessante, detestei
Sinais – acho que por causa de um certo caráter
messiânico, que me distanciou radicalmente do filme. Ainda não
revi o filme (e preciso rever), mas confesso que a imagem
de Mel Gibson como pastor ainda me causa arrepios. Com
A Vila fiquei chapado, mesmo com seus momentos cafoninhas.
Não esperava que A Dama na Água fosse tão parecido com
A Vila: antes de tudo, uma narrativa que vai sendo desconstruída
na mesma medida em que se constrói. Adoro o tipo de jogo
que Shyamalan propõe para o espectador: honesto quanto
à "crise da narrativa", que se reinventa a partir
daí, e sem medo de ser absurdo, de extrapolar (o que provoca uma
imensa rejeição, diga-se de passagem).
É curioso: por causa do Sexto sentido, Shyamalan
ficou conhecido como bom roteirista, antes de ser bom cineasta,
mas ele trabalha na contramão de Alejandro Gonzales Iñarritu –
e seu parceiro de escrita, Guillermo Arriaga -, e de Paul
Haggis, por exemplo. Não dispersa, concentra (o condomínio
de A Dama na Água, a vila de... A Vila, a casa de
Sinais). Também não há como separar o que ele escreve
do que ele encena, ao contrário de um roteiro de Haggis, por exemplo,
que pode ser bela matéria prima para um Clint Eastwood, mas nas
suas mãos deu no desastre de Crash. (aliás, A Dama na
Água é o verdadeiro Babel – este vai
passar no Festival do Rio, vocês vão entender). Um dos elementos
mais interessantes do filme é seu "multiculturalismo", a
verdadeira cooperação que se faz necessária entre essas diferenças
para decifrar os sinais que vão fazer "Story" reencontrar
seu caminho.
Mas também tenho restrições à A Dama
na Água. São mais ou menos os mesmos pontos que me afastaram
de Sinais, mas aqui de forma menos grave. É aquela
coisa messiânica que se repete, e aqui aparece na figura
do próprio Shyamalan se colocando na pele do escritor
que vai mudar o mundo. Essa questão era bem mais ambígua em A
Vila, ficava em aberto, em suspenso, se a decisão daquele
grupo liderado por William Hurt de reinventar sua história
na base de mentiras radicais era algo "positivo" ou
"negativo". E a construção do medo tinha um significado
político mais interessante, que se perde aqui. Pois em A
Dama na Água o medo é mais reduzido ao
velho elemento arquetípico das histórias infantis: o lobo
mau.
* * *
Ricardo Calil
Por
seu controle e precisão, os filmes de Shyamalan lembram um relógio:
a cada minuto, ele nos oferece uma nova camada de narrativa, uma
nova chave de entendimento, um novo sentido para as imagens. Seus
filmes mais interessantes são aqueles em que se enxerga sobretudo as
horas, em que o espectador se deixa levar pelo fluxo de imagens.
A meu ver, estão nessa lista O Sexto Sentido, Corpo
Fechado e, principalmente, A Vila. Já os filmes menos
interessantes são aqueles em que se pode ver os mecanismos do
relógio, em que se percebe cineasta manejando os elementos
do filme para levar o espectador a um determinado tempo e lugar. Assim
são Sinais e, em menor grau, A Dama na Água. No
novo filme, shyamalan desconstrói o conto de fadas com seu habitual
talento narrativo e visual. Na hora de reconstruí-lo, porém, ele
deixa as engrenagens expostas – por isso, talvez, a magia do filme
seja tão pouco crível, quase risível. E, como em Sinais,
vê-se menos o resultado do processo do que o processo em si.
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