O Segredo do Grão (La graine et le mulet),
de Abdellatif Kechiche (França, 2007)
por Eduardo Valente
Entre a sensibilidade e o excesso
Desde o princípio, O Segredo do Grão deixa
bem claras as regras do seu jogo: uma câmera absolutamente hiper-ativa,
que tenta trabalhar quase sempre bastante perto dos corpos, e
de preferência dos rostos, com cortes sucessivos dentro das cenas
de grupos de pessoas (que são várias) e elipses temporais fortes
nas passagens entre cenas. A opção por essa estrutura se revela
para o filme uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que empresta
a ele um inegável sentido de urgência (não só pelo mais banal
entendimento do significado da câmera nervosa, mas principalmente
pelo evidente uso de multicâmeras) também causa uma certa sensação
de fuga do ponto de vista, de um “tudo mostrar, tudo ver” que
resulta um tanto incômodo. O Segredo do Grão se equilibrará
o tempo todo entre estes dois extremos, frutos de uma estética
responsável ao mesmo tempo por seus melhores e piores momentos.
O diretor Abdellatif Kechiche, junto com Rabah
Ameur-Zameiche, forma a dupla de jovens cineastas franco-magrebinos
que tratam essencialmente das questões dos banlieues franceses,
e dos imigrantes árabe-africanos. Por isso, não é difícil entender
a sua dedicação e atenção aos personagens e ambientes, que ele
demonstra conhecer bem (não é surpresa alguma descobrir
o forte conteúdo autobiográfico do roteiro e do
espaço filmado). O retrato de uma verdadeira comunidade
familiar, que passa por inúmeros filhos e agregados, vai sendo
construído no filme com bastante eficácia de forma que entendamos
(e, às vezes, subentendamos) as relações complexas entre cada
uma das pessoas. São cenas como a do primeiro almoço em família
ou do périplo do protagonista pelas casas da família para levar
alguns peixes para os filhos e ex-mulher que vão nos permitindo
entrar nesse universo de forma a nos sentirmos ao mesmo tempo
convidados e invasores.
Quando
o filme parecia se conformar com um modelo de “realismo cotidiano
doloroso mas doce”, já um tanto visto, Kechiche surpreende ao
inserir uma trama em que o personagem principal (um velho homem
que tenta “deixar um legado” da sua vida para os vários filhos
e enteada) tenta construir um negócio a partir de um desejo quase
sonhador. Neste momento, há uma reconfiguração dos elementos em
cena (em especial da personagem da jovem enteada - sempre a força
do filme quando está em cena, no corpo e rosto sensuais
de Hafsa Herzi, ganhadora do César de revelação
feminina) , que dá um gás novo ao filme ao torná-lo muito mais
romanesco, criando para os personagens um determinado objetivo
e expondo uma série de obstáculos (que vão se sucedendo em progressão
geométrica) a serem ultrapassados para conseguir atingi-lo. É
uma virada especialmente interessante porque, no seu jogo de elipses,
Kechiche esconde totalmente a construção deste momento, sendo
nisso bastante ajudado pela interpretação do protagonista, Habib
Boufares, que segue toda uma tradição do não-ator como esfinge,
do rosto quase de pedra que nos entrega bem pouco de explícito.
Dentro deste entrecho, nunca está distante da
atenção do filme a dimensão econômica da existência dessa família:
o que o filme deixa claro, ao tratar constantemente do tema do
dinheiro, é a centralidade que este possui nas preocupações e
pensamentos de todos os envolvidos. Kechiche nos indica que, para
estas famílias de imigrantes, não é uma possibilidade ignorar
o tema nem por um segundo, e que ele é determinante de posturas
e atividades de todos. Ele é o motor da maioria das ações (não
por acaso o filme começa no ambiente do trabalho e na discussão
da exploração do mesmo) e também o objetivo da maioria delas.
Subsistência e transmissão (no sentido da passagem de algo entre
as gerações) parecem ser os grandes temas em jogo.
No entanto, com todo interesse que possuem estas
diferentes facetas levadas adiante pelo filme, O Segredo do
Grão nunca consegue de todo escapar de alguns problemas bem
sérios. Por um lado, percebe-se um inegável determinismo em algumas
relações, em especial naquelas que se dão entre os franceses europeus
e os imigrantes. Embora a exploração dos segundos pelos primeiros
e o preconceito sejam fatos sócio-históricos quase inescapáveis,
ainda assim o filme acaba tocando nessa tecla vezes demais, e
quase sempre com a mesma maneira expositiva que se torna francamente
constrangedora na cena final do jantar no barco, nas conversas
das mesas de convidados esnobes. São sempre momentos que diminuem
um pouco o impacto humano do filme, considerável em tantos outros
momentos.
Por
outro lado, há uma questão de simples estrutura dramática: as
cenas do filme todas parecem escapar do controle do seu diretor,
como se após dez minutos de entrecho elas se esticassem em outros
inexplicáveis dez, quinze minutos de exacerbação dramática que
acaba resultando francamente desagradável. Isso já pode ser notado
mesmo nas primeiras e melhores cenas (o almoço em família, a visita
à filha para entregar o peixe), onde a paixão francesa
pela verve exacerbada passa como um deleite em ouvir os personagens
falar (mesmo que o que eles digam seja, eminentemente reiterativo
ao extremo). Mas se torna realmente intolerável no clímax dramático
do jantar, onde a montagem paralela dos inúmeros obstáculos enfrentados
pela família são de uma exasperante manipulação melodramática,
especialmente clara na visita à casa da nora e do seu irmão imigrantes
russos, com o choro e os gritos da mulher.
A opção por esta ultra-dramaticidade é tão radical
que é impossível não ver que trata-se de uma óbvia escolha consciente:
Kechiche parece realmente acreditar que precisa fazer seu personagem
atravessar um inferno em busca do seu objetivo – mas em meio a
este inferno nunca deixamos de pensar na manipulação deste pela
mão todo-poderosa do diretor. Tudo isso, claro, resultará na abrupta
imagem final do filme, onde Kechiche acaba apelando para esta
ferramenta tão recorrente do cinema de autor recente, o final
aberto que, mais uma vez aqui, soa talvez como fuga fácil da opção
pela tragédia ou pela redenção. Abrindo os dois caminhos e escapando
de optar por um, Kechiche resolve caminhar na tênue linha que
separa a covardia da indeterminação. É apenas mais um dos dilemas
não totalmente resolvidos por este fascinante mas problemático
filme.
Julho de 2008
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