cinemateca cinética
A Menina Santa (La Niña Santa),
de Lucrecia Martel
(Argentina/Espanha, 2004)
por Fabio Diaz Camarneiro
Deus e os gracejos da carne
Em A Menina Santa, um grupo de médicos está em um hotel,
para um congresso. Dentre eles, chama a atenção o doutor Jano:
quieto, introspectivo, ele bolina uma menina (Amália) na rua.
Coisa entre a perversão (a pedofilia) e a inocência. Sim, “inocência”:
Jano é praticamente um homem impotente, que jamais conseguirá
pôr em prática seus desejos. Isso o deixa aprisionado em uma atmosfera
entre a letargia e a culpa. Uma espécie de purgatório terrestre,
em que os demais personagens também se arrastam.
Talvez uma maneira de escapar desse purgatório
seria a visão de Deus. Mas como procurá-lo? Como reconhecê-lo?
Coloca-se outra questão: a evidência do mundo. Sim, o mundo está
em frente a nossos olhos, mas o que seria ele além de um amontoado
de corpos que se encontram, um amontoado de vozes que falam e
que não se entendem? Além de purgatório, o mundo de A Menina
Santa é uma espécie de Babel em que as evidências são sempre
confusas, ambíguas – ou, em outra palavra, femininas. A primeira
impressão é que Lucrecia Martel filma com olhar feminino. Mas
o que seria isso? Em primeiro lugar, trata-se de uma constatação
(o cinema como algo eminentemente masculino) e uma oposição (a
busca de Martel é por esse outro olhar, que chamamos “feminino”).
Amalia e sua melhor amiga, Jose (um nome masculinizado,
diminutivo de Josefina), assistem a aulas de religião nas quais
se discute sobre as mensagens de Deus. Mas o divino parece algo
apequenado perto da beleza da atriz Mia Maestro. Jose faz questão
de sobrepor o desejo ao divino, à carne ao espírito. Presta atenção
à forma em que a professora respira, confidencia que a viu ser
beijada por um homem, se delicia em narrar o detalhe da língua
dele dentro da boca dela. Elas se confundem com sua sexualidade
assim como se confundem com a existência de Deus. Se os deuses
só existem quando se crê neles, os desejos só se realizam quando
são compartilhados.
Amalia e Jose compartilham seus desejos, os confidenciam
como se fossem carícias ou beijos (e uma vez trocam carícias e
beijos como se fossem uma confidência). Jose tem um namorado a
quem ela oferece seu corpo como se fosse uma mártir, como se fosse
a vítima de um sacrifício. Oferecer o espírito a Deus ou o corpo
a alguém são aventuras cegas: nunca se sabe medir o perigo da
aventura. Martel filma também com essa coragem cega e com entrega
total aos corpos dos seus personagens. Ao mesmo tempo, tem um
rigor imenso nos enquadramentos e na duração dos planos, que corroboram
essa letargia, essa ambigüidade das evidências do mundo.
Ao ser bolinada, Amalia não sabe se foi molestada
ou se recebeu uma mensagem divina. Um funcionário do hotel acha
que o doutor Jano e outro médico são velhos amigos apenas porque
dividem o mesmo quarto. A mãe de Amalia, Helena, sofre de certa
surdez e o tempo todo tenta “ler” o que se passa com Jano. Estaria
ele flertando com ela? Ou trata-se apenas de um homem gentil e
educado? Quando ele está prestes a confessar seu pecado (a bolinação),
ela pensa estar diante de uma confissão de amor. Eles se beijam.
Afinal, na tradição cristã, toda confissão não é a mesma coisa?
O ato de confessar é mais importante do que aquilo que se confessa.
Para os personagens de A Menina Santa, a tentativa de se
comunicar com o outro é mais importante que ser ou não compreendido.
A mera existência é mais importante do que a busca de razões para
se existir.
Estar no hotel é também estar doente, é ser assolado
por dúvidas, é ter incertezas, e esses personagens estão todos
doentes: os gestos de Helena (interpretada por Mercedes Morán)
são sempre letárgicos, o pescoço sempre meio curvado, o olhar
um tanto perdido, os gestos hesitantes. Jano muitas vezes parece
autista, dentro e fora daquele mundo, sempre ruminando pensamentos
e desejos, medos e lembranças que não compartilha com ninguém.
Os outros funcionários do hotel parecem sempre ausentes, não percebem
quem está ao redor ou simplesmente se comportam como se conversassem
em um almoço de família – com todas as perversidades que existem
em uma família. À parte todos esses doentes, um dos “chefes” do
congresso se esforça por tudo supervisionar, como uma espécie
de super-ego castrador que tenta impedir que os médicos dêem vexame
em “escapadas” com enfermeiras ou outras beldades do hotel.
Dois universos se chocam no filme de Lucrecia
Martel: a religiosidade e a carne. Não se faz distinção entre
as dificuldades do diagnóstico médico e do diagnóstico da existência
de Deus. Espera-se algo dos céus, divinos, mas tudo o que cai
na terra é um homem nu, que surge sem aviso como num conto surrealista.
Sobrevivente de uma tentativa de suicídio, esse corpo inesperado
não prova a existência de Deus, mas o absurdo do mundo.
A piscina do hotel é um espaço privilegiado de
convivência, onde os personagens se encontram e se exibem uns
aos outros. Na piscina, Amalia e Jose gostam de se apartar do
mundo. Quando a água começa a escorrer (o tempo escorrendo), elas
insistem em ignorar o fim eminente. Algo está para acontecer,
algo que fará o congresso terminar de forma contundente – mas,
para o espectador, essa conclusão final será sempre desconhecida.
Depois de filmar a dúvida da fé, Martel termina seu filme reforçando
todas as dúvidas. Se estivéssemos em um cinema masculino, isso
poderia ser visto como um engano (ou um engodo para o público).
Mas, nesse mundo feminino, purgatório habitado por mulheres surdas
e homens letárgicos, as conclusões são impossíveis. Um “fim” ortodoxo
representaria uma hierarquia de mundo, o contrário do universo
representado pela metáfora do hotel, onde todos são obrigados
a se encontrar, mesmo sem se compreenderem. Mundo em que as piscinas,
o fluido da água, funcionam como vasos comunicantes dos desejos
reprimidos.
Na edição nacional do DVD, os extras são paupérrimos:
apenas uma galeria de fotos, coisa totalmente desnecessária para
quem tem o filme à mão. Para quem puder, a edição argentina traz,
além de making of e entrevista com a diretora, o curta
Rey Muerto, que Martel fez em 1995.
para Camila Moraes
editoria@revistacinetica.com.br
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