O Inferno de Henri-Georges Clouzot (L’enfer d’Henri-Georges Clouzot), de Serge Bromberg e Ruxana Medrea (França, 2009)
por Fábio Andrade

Enfim, o inferno

Logo no começo de O Inferno de Henri-Georges Clouzot, os diretores recuperam um depoimento em que Clouzot, o próprio, diz ter percebido a impossibilidade da realização de L’Enfer logo depois de escrever o roteiro. Segundo o diretor, era inviável passar um sentimento paranóico, desenvolvido pela personagem ao longo de anos, em algumas poucas horas de projeção. E, de fato, L’Enfer nunca chegou a existir. Como um caso de exceção na história do cinema, Clouzot recebera, em 1964, carta branca do estúdio para a realização do filme. O diretor investe tempo e dinheiro em uma série de experimentos visuais, de efeitos à época inéditos, baseados na op art, na música eletroacústica e na arte cinética. Embora muito material tenha sido produzido, o filme permanece não terminado, sem o registro sonoro que acompanharia as imagens. Trinta anos mais tarde, Claude Chabrol compraria o roteiro da viúva de Clouzot, e realizaria o seu L’Enfer. As imagens produzidas em 1964, porém, permaneciam inéditas até Serge Bromberg (um importante restaurador de filmes francês) e Ruxana Medrea retomarem as 185 latas de material filmado para contar a história deste suposto fracasso, desta operação abortada.        

A necessidade de recontar os eventos históricos que motivam O Inferno de Henri-Georges Clouzot poderia indicar que a vocação do filme não iria além de um bem realizado extra de um dvd. Esse dvd, porém, nunca poderia existir. Como L’Enfer não é finalizado, o making of se torna o filme possível – não diferente de Lost in La Mancha para o Quixote, de Terry Gilliam; ou It’s All True para o filme brasileiro de Orson Welles. Mas há uma ironia ao longo de O Inferno de Henri-Georges Clouzot que parece nascer daquele primeiro depoimento, da suposta consciência de um artista que se joga em um labirinto do qual ele sabe não existir saída. O acerto primordial dos diretores está não só no posicionamento da fala de Clouzot na montagem, mas também da percepção de o quanto ele é determinante para a estruturação do filme. Pois toda a apoteose visual dos takes originais das sequências coloridas de L’Enfer ganha, com isso, um novo sentido no filme de Bromberg e Medrea: antes a frontalidade daquelas alucinações zombava da situação do protagonista; agora, aquelas assombrações olham diretamente para nós e para a história.

O Inferno de Henri-Georges Clouzot é marcado por esse desconforto, essa sensação de termos sido arrastados para um golpe previamente calculado e arranjado cuidadosamente por todos os envolvidos. Para um documentário a partir de fatos reais, ele está surpreendente próximo de um mockumentary. Pois L’Enfer é o filme que não podia ser feito, mas que, mesmo inviável, deixaria rastros suficientemente impressionantes para lamentarmos sua inexistência. A sensação conspiratória deixa de ser do ciumento protagonista, e passa a ser nossa: fomos arrastados para dentro de um filme-fantasma, com planos que sobrevivem feito esfinges, nos atraindo para a sua própria impossibilidade. L’Enfer é uma espécie de canto de sereia, onde conhecemos a lenda ou a artificialidade que nos seduz, mas ainda assim nos sentimos tragados por seu magnestismo. Se Romy Schneider ri; somos nós o alvo da piada.

Há, é claro, um valor intrínseco na abertura de arquivos que permite, enfim, que parte do material de Clouzot seja vista pelo público. Mas o que eleva O Inferno de Henri-Georges Clouzot além da mediocridade providencial é a percepção, dos diretores, de que a história se encarrega de completar um sentimento que o filme, sozinho, não soube produzir. Pois se Clouzot filmava algo que acreditava ser irreprodutível, é justamente o recuo permitido pelo documentário em terceira pessoa que restaura essa possibilidade. Pois L’Enfer só pode ser a representação do inferno enquanto um filme inacabado, acessível em seu fracasso. O inferno só passa a existir com a reinserção do diretor no próprio filme, pairando sobre os planos desmontados, ecoando de um lugar onde as pessoas falam, mas não ouvimos qualquer som; onde a inversão de cores não foi feita pelo laboratório, e a maquiagem que compensaria essa inversão é apresentada em sua estranhíssima naturalidade.

Há, nessa restauração, um trabalho valioso de montagem e de escritura de cinema, afastando as críticas mais apressadas de que todo o valor do documentário advém das filmagens originais de Clouzot. A articulação central entre o arquivo e os depoimentos captados para o documentário visa quase sempre possibilitar esse mistério que atravessaria o filme original – e a exceção lamentável está nos momentos em que dois atores reencenam trechos do roteiro, tentado esclarecer o que é naturalmente inesclarecível. É um recurso ineficaz, pois o inferno só é infernal enquanto permanece desconhecido. Em todo seu trabalho de pesquisa e reconstituição factual, O Inferno de Henri-Georges Clouzot tem como maior trunfo a sua própria falha, que permite que as imagens desse inferno sobrevivam como a única coisa que elas podem realmente ser: um absoluto e impenetrável enigma.

Maio de 2010

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