in loco - especial seminário "panorama do cinema mundial"
Lições da Turquia para o cinema brasileiro
por Leonardo Mecchi

Apesar de suas enormes diferenças, os cinemas nacionais da Turquia e do Brasil guardam muitas semelhanças quando analisamos sua relação com o público local nas últimas décadas – e o país eurasiático tem muito a nos ensinar quando o assunto é a ocupação do próprio mercado. Lá como cá, a produção local, após alguns anos de diálogo estreito com seu público (no Brasil, particularmente entre 1976 e 1983; na Turquia, de 1965 a 1975) sofreu um enorme golpe de viés político e econômico que a precipitou não apenas ao esquecimento, mas à posição de vergonha nacional no imaginário popular, para só nos últimos anos reconquistar o seu espaço. Mas para entendermos as características que aproximam as duas cinematográficas – e as decisões que as levaram para caminhos diferentes a partir da retomada de suas produções – é preciso analisar um pouco de sua história.

Embora tenha produzido seu primeiro filme ainda em 1914, a Turquia só consolidou uma produção cinematográfica constante após a Segunda Guerra Mundial. Antes disso, as produções eram, em sua maioria, documentários financiados por instituições governamentais (em especial o Exército) ou peças encenadas pelos mesmos grupos que as apresentavam nos teatros. Entre 1923 e 1939, por exemplo, apenas um diretor de cinema atuava na Turquia: Muhsin Ertugrul, que dirigiu 29 filmes nesse período. Tudo isso mudou rapidamente a partir da década de 50, a ponto de em 1952 um total de 49 filmes terem sido produzidos no país – mais do que a Turquia havia produzido em toda sua história até então.

O cinema turco conheceu o auge de sua popularidade e produtividade nas décadas de 60 e 70, quando a produção local girava em torno de 250 a 300 filmes por ano, alçando o país à posição de terceira maior potência cinematográfica do mundo. Assim como a Hollywood norte-americana e a Bollywood indiana, a Turquia também possuía na época uma indústria forte e auto-sustentável: Yesilcam. Entretanto, apesar de encontrarem eco junto ao grande público, grande parte dessa produção escorava-se num populismo pautado no melodrama exacerbado, com pouca atenção à qualidade técnica e estética dos filmes (a ponto de, por mais de uma vez, os dois principais festivais de cinema do país considerarem que nenhum dos títulos exibidos era digno do prêmio de melhor filme).

Uma prática comum na época era a produção de remakes ou cópias de filmes hollywoodianos, em geral com orçamento mínimo e rodados em poucos dias. Apesar disso, a produção constante, o desenvolvimento de um sistema de distribuição regionalizado (que refinanciava a própria produção) e a criação de um star system nacional garantiam o sucesso da produção cinematográfica local. Diretores como Omer Lutfi Akad, Metin Erksan, Yilmaz Guney, Atif Yilmaz e Halit Refig eram exceções dentro desse cenário, produzindo filmes autorais e com maiores pretensões artísticas, porém sem grande retorno de público.

Tal produção, entretanto, sofreu um forte revés em 1980, em função principalmente da expansão da TV e da chegada do vídeo-cassete. Até então, a Turquia possuía um único canal de TV, de controle estatal e transmissão em preto e branco. Do dia para a noite a transmissão em cores chegou à Turquia, centenas de concessões de novos canais foram distribuídas e o vídeo-cassete se espalhou por todo o país. Acrescente-se a isso uma grave crise econômica, conseqüência do terceiro golpe de estado no país em menos de 20 anos, e temos a derrocada de Yesilcam.

O número de ingressos vendidos no país caiu de 90 milhões em 1966 para 56 milhões em 1984 e, finalmente, para apenas 11 milhões em 1990. Da mesma forma, o número de salas de cinema caiu de aproximadamente 2000 salas em 1966 para 854 em 1984 e 290 em 1990. Em face de tal crise, o nível de produção também despencou, chegando a seu nível mais baixo em 1997, quando apenas 20 filmes foram produzidos e sequer metade deles chegou ao circuito exibidor.
Tal panorama é muito semelhante ao que se observou no cinema brasileiro a partir de 1984, quando o fim da ditadura militar trouxe consigo um período de hiperinflação e forte desvalorização cambial. Em 10 anos, o parque exibidor brasileiro caiu das 3.276 salas existentes em 1975, para apenas 1.553 em 1984. No mesmo período, o público total do cinema no Brasil sofreu uma queda de 67%. Com a chegada de Collor ao poder e a extinção da Embrafilme, a produção cinematográfica brasileira chegou ao fundo do poço: entre 1990 e 1994, apenas 29 títulos brasileiros chegaram aos cinemas (contra 435 títulos da primeira metade da década de 80).

Foram aproximadamente duas décadas de divórcio entre o cinema turco e seu público, período no qual a expressão “como um filme turco” era tida como um insulto, sinônimo de banalidade, melodrama excessivo e mau gosto – num estigma muito parecido com aquele que o próprio cinema brasileiro teve que combater nos anos 90. Assim como no Brasil, diretores e técnicos de cinema turcos tiveram que procurar abrigo na publicidade e televisão durante esse período e a produção de filmes de apelo erótico (no início inocentes, depois cada vez mais explícitos) cresceu fortemente, a ponto de chegar a responder por quase 70% da produção anual local. A partir do início do século XXI, entretanto, esse cenário é revertido, e é aqui que as histórias dos cinemas brasileiro e turco começam a se diferenciar.

Enquanto o cinema brasileiro optou por investir recursos públicos no aumento da produção (a prioridade era a retomada da produção, na crença de que ela por si só traria o público de volta), o cinema turco manteve o nível de filmes produzidos anualmente, focando seus recursos – em sua maior parte privados – no desenvolvimento de filmes com maior apelo popular. Da mesma forma, enquanto no Brasil a produção cinematográfica é financiada em quase sua totalidade através de recursos públicos (as famosas leis de incentivo), na Turquia essa produção (ou ao menos sua parcela mais “popular”) é financiada diretamente por seus diretores e atores, que investem as receitas geradas por seus projetos em TV e publicidade na produção de seus filmes. Com o sucesso desses filmes, o próprio lucro das bilheterias é utilizado para refinanciar os próximos projetos, gerando assim uma auto-sustentabilidade que ainda está longe de se tornar uma realidade no Brasil.

Há também investimento público na produção de filmes na Turquia, mas ele é mínimo e focado em produções mais autorais. Em 2004, por exemplo, o Ministério da Cultura turco investiu o equivalente a R$ 25 milhões na produção local (sendo que cada projeto não pode ser contemplado com mais de R$ 750 mil), através de empréstimos que só não precisam ser reembolsados caso o filme seja premiado em importantes festivais internacionais. No mesmo ano, o governo brasileiro investiu mais de R$ 145 milhões apenas através de isenção fiscal e a fundo perdido, sem contar editais de fomento direto.

A estratégia adotada na Turquia parece ter surtido efeito já que, mantendo uma média de 30 a 35 longas produzidos por ano, o cinema turco vem aumentando sua participação de mercado ano a ano (primeiro através do incremento do público nas salas de cinema e, num segundo momento, ganhando terreno em cima dos filmes estrangeiros), até conquistar ano passado, pela primeira vez em mais de 30 anos, mais de 50% dos freqüentadores das salas de cinema (o pico histórico de participação de mercado do cinema brasileiro foi de 36% em 1982 e hoje gira em torno de 12%).

Se o grosso dessa produção que consegue travar um diálogo mais amplo com o público não chega a ter grande relevância cultural – caso da paródia hollywoodiana G.O.R.A. (2004, 4 milhões de espectadores) – ou apela para perigosos sentimentos ultranacionalistas – como o recordista de público Iraque, Vale dos Lobos (2006, 4.3 milhões de espectadores) –, isso não chega a eclipsar o cinema autoral, que tem conquistado cada vez mais espaço no cenário internacional com nomes como Nuri Bilge Ceylan (diretor de Distant e Climates, ambos premiados em Cannes) e Zeki Demirkubuz (de Kader e Innocence), ou ainda diretores “expatriados”, como o alemão Fatih Akin (Contra a Parede - foto acima - e Atravessando a Ponte) e o “italiano” Ferzan Ozpetek (A Janela da Frente e Um Amor Quase Perfeito), que têm trabalhado em suas obras as questões surgidas a partir da volatilização das fronteiras e identidades na Europa (há hoje, por exemplo, mais de 3 milhões de turcos vivendo apenas na Alemanha).

Dessa forma, com uma política estatal estruturada e a utilização adequada e ponderada dos recursos públicos, sem sonhos megalomaníacos de reerguer a era de ouro de Yesilcam, a Turquia conseguiu não apenas retomar sua produção (objetivo que o Brasil também atingiu), mas torná-la uma verdadeira indústria, com sucessos de público refinanciando novas produções comerciais e projetos autorais viabilizando-se tanto localmente quando no mercado internacional. Há, na história recente do cinema turco, muitas lições que o cinema brasileiro – e, principalmente, o poder público que o regulamenta – pode e deve tirar. Basta, pra isso, vontade política.

editoria@revistacinetica.com.br

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