Um Alguém Apaixonado (Like Someone in Love),
de Abbas Kiarostami (França/Japão, 2012)

por Paulo Santos Lima

Adeus às ilusões

Um Alguém Apaixonado tem, em seu plano final, o ponto mais traumático da obra de Abbas Kiarostami. Uma tremenda quebra ocorre contra o espectador, que trinca violentamente um pacto estabelecido há vários filmes – desde Close Up, ou antes – em que a relação espetáculo-espectador (espetáculo tão somente como aquilo que atrai a visão) perpassa pontos fortes ao cinema: a questão da aparência e da captação prévia de um universo que se perpetua na experiência da recepção. A apreensão, aliás, é um dado chave no cinema de Abbas, pois o que parece importar é o momento em que a imagem chega ao espectador, aos personagens etc. É na aventura da percepção que o drama, o amor, a história, o medo, a busca, a morte e a vida tornam-se palpáveis – imagem, efetivamente.

É um cinema que lida com o relacionamento: a interação entre seres e mundo, entre aquilo que nos escapa ao mesmo tempo que nos revela. É, também, a enganação que se estabelece como revelação, ou seja, é o cinema. Like Someone in Love, nome original desse longa e também de música de James Van Heusen, que aqui chega aos nossos ouvidos pela voz de Ella Fitzgerald para etiquetar também a fina substância que adensa a experiência sensorial nos trabalhos de Kiarostami, é um trabalho que abarca tudo isso, pois é uma decorrência daquilo que o diretor já estava tratando mais conceitualmente em Ten, Five, Shirin, Cópia Fiel (e menos literalmente, mas com mesma profundidade, em O Vento nos Levará, Onde Fica a Casa do Meu Amigo, ABC África...), que é o jogo tenso entre o dentro-fora. Campo e extracampo. Quem invade quem? Aliás, numa sala de cinema, quem chega antes: nossos olhos à tela ou a imagem a nós? Em Shirin, por exemplo, as pessoas existiam porque a luz da tela pela qual elas assistiam a um filme refletia em seus rostos - ou seja, elas existiam na essência do cinema, que é estarem tangíveis aos nossos olhos. Kiarostami é Ozu, bem sabemos, e, como tal, o encontro entre os seres ocorre na jarda da geometria, no que poderíamos chamar de plano, disposição de elementos no quadro (Abbas é, também, um cineasta-pintor, compositor de espaços que se relacionam dinamicamente com suas molduras, seu recortes). Não há psicologia entre personagens, mas sim revelação inusitada: a aparência é dúbia, ela mente uma verdade, mas também se trai, pois acaba revelando algo maior a ela, exterior a ela.

Campo e extracampo, dentro e fora, espaço de um e espaço do outro, imagem de um e imagem do outro, eu e o outro, o espectador e o filme, o ser e o mundo: grande encontro mediado pela sensação, pela apreensão, pela emoção. Estão aqui algumas balizas com as quais Um Alguém Apaixonado se inicia e se encerra. Logo no início, antes da primeira imagem, o som: “Slowtrane” de Coltrane instala o espectador naquele espaço; os personagens já estão ali, ainda que deslocados. Um plano fixo alongado mostra uma bela japonesa, que mais tarde saberemos ser Nagisa, conversando com algo espacialmente contraposto a ela, no extracampo, sua amiga Akiko (Rin Takanashi). O contracampo, em geometria obtusa, mostrará a moça, bastante isolada daquele diagrama, a única que é mostrada quase sempre sozinha no quadro, diferente dos outros personagens. Assim como Gosto de Cereja, Akiko é um enigma que vai se revelando (parcialmente) através das relações entre ela, personagens e mundo.

Sim, isso é quase uma regra da gramática do cinema, mas Kiarostami, como sempre, enfatizará a “explicação” de quem são esses seres pelo que eles captam do seu entorno. Akiko, como o próprio Abbas documentarista em ABC África, ou o misterioso homem de Gosto de Cereja (cujo suicídio se traduz e consuma pela percepção), todos repetem a experiência do espectador, que precisa processar as imagens que uma tela lhe mostra, sempre sob o risco de uma releitura do original. Akiko, mais tarde, saberemos ser uma garota de programa, que atende um cliente bacana: Takashi, um professor e tradutor idoso, que a compara à mulher de um quadro - e a mocinha reforça que se parece muito com a avó etc. Uma cópia fiel que se serializa a ponto de não ser estranho que seu namorado, um ciumento maluco e violento que nem sonha que sua pequena faz programas, não perceba que é ela própria quem está numa propaganda de disk-sexo.

O que determina, então, a veracidade, já que a originalidade pouco importa? Voltamos à relação dentro-fora e seu jogo, sempre violento, pois sob risco de devassa, que traz o moto que engendra o mundo. O fã de Mohsen Makhmalbaf que, de tanto cultuá-lo (por seus filmes, ou seja, por suas imagens) se faz passar como tal e, é certo, assume uma fidelidade que retira o original de sua cátedra. O espaço, ferramenta útil, mas nem sempre eficaz para regrar as experiências e assim manter sob equilíbrio forças tão invasivas como o olhar, que consegue devassar as mais subterrâneas intimidades (nos disse Shirin), estilhaça-se e suas brechas trazem um outro campo, um certo extracampo. Kiarostami não traz uma relação harmônica entre ponta e outra, entre imagem e contra-imagem, entre primeiro plano e fundo, pois existe um erotismo inerente no jogo que o estar no mundo revela. Poderia ser, inclusive, uma premissa típica do documentário (os filmes de Abbas deixam clara a existência de um mundo que já existia bem antes da câmera o encontrar), mas o lance é outro: a mediação é feita pelo olhar do personagem – sempre. Um olhar compartilhado pelo espectador, que de certo modo está num extracampo 3D, do outro lado da vidraça.

Akiko, no táxi que a levará ao tal cliente bacana. Pára-brisa e janelas do carro mostram uma Tóquio que não representa, mas sim revela, evidencia uma história daquele lugar, uma duração, e dá visualmente um ritmo de jazz melancólico ao drama de Akiko, que só podemos intuir. Ela dá um cano na avó, que passou rápido pela cidade para ver a neta. Ela pede pro taxista dar um retorno na praça do aeroporto: a imagem da avó, ali parada, esperando, casa-se fidedignamente com a voz das mensagens que ela deixou no celular. Não há simulacro: ali está uma mulher idosa bastante original, instalada num espaço estranho, quase marciano, com códigos muito tumultuados e mutantes para o que seria o original do Japão. É uma sequência que, além de se afinar à experiência do diretor naquela terra estrangeira, traz toda a repercussão histórica de um país que recriou parâmetros para seguir pela história do século XX e chegar, no XXI, como um sítio de caos luminoso e de multideposição. Nisso, Akiko projeta-se como uma imagem referencial, remetendo a um outro estado que, como a pintura no apartamento do professor, é um meio de transfiguração (como o céu avistado pelo suicida de Gosto de Cereja). A leitura que ele faz de Akiko é fibrilante, pois o modo como a moça se relaciona com os espaços (ela como prostituta, por exemplo) trai a alusão de suas linhas.

É um filme diferente de Cópia Fiel, no qual a encenação creditava uma existência anterior de casal àquela mulher (Juliette Binoche) e àquele homem (William Shimell) que entram no jogo de copiar fielmente um casal real, confirmando que o cinema (e a vida, parece sempre nos dizer Kiarostami em seus filmes) delega ao carbono a sua indistinção, a real revelação. Em Um Alguém Apaixonado, a experiência imersiva continua forte, nos “enganando” para nos trazer uma experiência que está numa esfera não muito tangível pelo filme, como o professor se fingir de avô de Akiko para o namorado dela e conseguir ludibriar também a quem está fora daquele espaço – nós, na eterna condição de espectadores, assim como todos os personagens do longa. Kiarostami, contudo, coloca um limite na encenação, ou, melhor, deixa mais evidente o risco de ruptura violenta que há nesse jogo de sedução que existe na imagem (graças, claro, à fetichização religiosa-sexual-tarada de quem a percebe). A experiência religiosa com as coisas se desmancha.

Noriaki, o namorado, ganha aqui as linhas finais deste texto. É ele, extraordinariamente na obra de Kiarostami, quem marca uma quebra das paredes que esquadrinham o espaço onde os personagens vivem (paredes invisíveis, mas bastante presentes, servindo como verdadeiras “telas para se ver” ou distinguir o ente do aparente, ou o um e o outro). Noriaki aparece no filme agarrando forte os braços de Akiko, aquela belíssima moça que se mantinha sempre no “outro” plano. Como o espectador. Noriaki, de certo modo, é a presença deste cinema japonês físico, cujas relações são mediadas pelo contato físico intenso. Será ele a dar outra bossa à modulação espacial proposta por Akiko e pelo Takashi. E a ira com a qual o rapaz volta-se contra o “casal”, quando descobre a farsa, indo enfurecido ao apartamento de Takashi, talvez seja por conta dessa comunhão que existe entre a moça e o velho, esse estar no mundo que se garante como narrativa - ainda que jamais alheio à inerência física do mundo real – há uma tensão, nos personagens, que denuncia uma presença outra que escapa ao controle e ao espaço do plano, mas que, por refletir essa outra natureza que os filmes de Abbas sempre deixam escapar ao encontro dos nossos olhos, parece sempre no limite de romper a redoma.

Pois Noriaki fará isso. O plano final, fortíssimo, o tal com o qual começa esse texto, mostra uma literal quebra de janela, algo arremessado contra a janela do apartamento de Takashi, que inclusive o tira do nosso campo de visão. O golpe é forte também a nós, muito mais que num filme em 3D, porque pega duro nos sentidos, na visão e audição (a janela grita alto quando quebra), e porque o inesperado toma corpo nesse mundo dos filmes de Kiarostami, onde as revelações chegam pelas entrelinhas do jogo de cena entre personagens, pela forte tensão que o extracampo exerce no plano, na apreensão que esses seres fazem sobre aquele mundo filmado. Se Shirin era o espelho que revelava nossas mais profundas intimidades, Um Alguém Apaixonado nos desperta do sonho na sala escura.

Novembro de 2012

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