debate crítico
Linha de Passe,
de Daniela Thomas e Walter Salles (Brasil, 2008)
editado por Eduardo Valente

Depois de termos feito isso em anos anteriores, com A Dama na Água e Borat decidimos retomar, agora como hábito mais incentivado, os textos que proponham aos redatores que enviem textos mais curtos sobre alguns filmes que sempre acabam movimentando a redação quando entram em cartaz. Aproveitamos a entrada simultânea em cartaz de Ensaio sobre a Cegueira e Linha de Passe, e o fato de que foram vistos rapidamente pela maior parte dos redatoes (condição sine qua non, afinal, para que o formato funcione), para dar início a esta nova série de intervenções.

A idéia principal continua sendo a de criar um diálogo direto entre idéias diferentes, revelando as distintas visões dentro da redação da Cinética, que às vezes ficam escamoteadas pela existência de apenas um ou, quando muito, dois textos sobre alguns filmes. Mas também não se trata de afirmar a diferença pela diferença, pois muitos traços unem os olhares, como o leitor verá abaixo: por exemplo, a constante ida aos filmes anteriores de Walter Salles como porto de partida para olhar este Linha de Passe, com dois redatores, com apreensão bem diferente do filme inclusive, fazendo um mesmo "rearranjado" da carreira do diretor, propondo este Linha quase como um "terceiro filme". Vale esclarecer, por fim, que as intervenções de cada crítico foram escritas sem a leitura prévia das outras, e que a disposição delas em determinada ordem é arbitrária, não represetando um discurso com começo, meio e fim.

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Felipe Bragança

Terra Estrangeira: a cidade de São Paulo parece fazer bem ao cinema de Walter Salles. Há alguma coisa de caótico que lhe ajuda a ser menos totalizante e há alguma coisa de frio, que lhe ajuda a ser menos “humanista”. Linha de Passe é mais um de seus filmes filiados ao gênero do road movie, cinema de circulação física por espaços de não-pertencimento e isso, embora sempre curioso, não é grande surpresa – o que chama a atenção agora é ver como o cineasta leva esse impulso pela deriva não mais ao vazio de sentido, mas ao excesso de possibilidades e ao patamar contemporâneo da megalópole. O que se percebe de mais instigante para além dessa constatação, é que a cidade, com seu gigantismo territorial e caminhos entrelaçados, empresta ao cinema de Walter uma tensão entre o ir e o conter-se, a trajetória e o impedimento do movimento, o humanismo dramatúrgico e a motora circulação de corpos – que não se via, desde sua incursão pelas vielas de Lisboa e as estradas portuguesas, 15 anos atrás. Nesse feliz reencontro com Daniela Thomas, Walter consegue multiplicar efeitos e caminhos traçados em Terra Estrangeira e em Central do Brasil – seus dois filmes mais precisos na construção de cena e discurso: a deriva da juventude de Terra Estrangeira e o olhar sobre a classe média baixa brasileira de Central do Brasil encontram-se aqui em um entrecruzamento que vai da dramaturgia (os jovens à deriva X a mulher de meia idade que tenta rever a sua vida na solidão) às resoluções visuais que migram entre a intimidade da câmera/fotografia aos planos-síntese de país/discurso (vicio de origem, aparentemente, do diretor).  

Deixando-se de lado a atenção a tais vícios (sem necessariamente um tom pejorativo – apenas a constatação de algumas reiterações de premissa), o que vi nesse Linha de Passe é o que eu poderia chamar de genuíno terceiro longa-metragem de Walter Salles, seguindo, em trajetória, uma articulação vontade-imagem que, de sua forma, parecia ter se diluído desde o choro final de Dora em Central do Brasil. Esse retorno revivido e vivaz à grande cidade, que era o que o plano final re-almado de Dora nos fazia projetar e projetar lágrimas culposamente melodramáticas. A de se notar que este é, de fato, o primeiro filme brasileiro (em termos de produção/roteiro/equipe/elenco) de Walter em alguns bons anos. O retorno a casa/país/terra estrangeira ao inverso, parece ter lhe trazido alguma serenidade discursiva e uma notável (no sentido de se fazer mesmo aparente na tela) tranqüilidade para filmar. Nas entrelinhas dessa nova crônica de gestos, a rima entre as narrativas paralelas ainda deixam-nos ver a vontade de colher o todo com as mãos – mas de alguma forma (nos desvios de olhar do elenco pulsante, na câmera viva, mas sem tiques, de Mauro Pinheiro e na cadência de roteiro-decupagem-montagem), Walter e Daniela conseguiram construir um filme em que, se ainda não há uma postura insurgente ou desviante diante da contemplação do estado-das-coisas-do-realismo, há uma saudável quantidade de elementos que lhe escapam entre os dedos e parecem apontar para uma delicada consciência dos limites de seu olhar, das brechas de narrativa da alma, das impotências de um cinema – que aqui fala das derrotas e da dor, sim, mas que projeta o gozo não mais como um lugar  de retorno/constatação moral da afetividade ou do “humanismo do pobre”, mas de saudável aventura ao desconhecido e ao desejo.

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Fábio Andrade

Existe, em Linha de Passe, um desejo bastante claro de retomar rumos. A começar, o da própria carreira de Walter Salles: com o retorno da parceria com Daniela Thomas e de um universo narrativo abandonado. Abril Despedaçado, Diários de Motocicleta e Água Negra são ilhados como desvios de carreira; como filmes que saltavam de uma trajetória estudada e coerente para um breve ancorar em terras outras. Linha de Passe, porém, não é só um retorno: mais do que desejar continuar um itinerário suspenso iniciado em Terra Estrangeira, o filme é movido pela vontade de se alinhar a questões de um certo cinema contemporâneo, trocando as inclinações industriais pela presença em festivais de maior credibilidade artística. A intenção, porém, não poupa Linha de Passe da densa organização dramatúrgica característica a Salles: embora, na aparência, tente dialogar com cinemas como o de Hou Hsiao-hsien e Lucrecia Martel, as imagens (com o olhar sempre inspirado, mas aqui um tanto deslocado, de Mauro Pinheiro Jr.) parecem sempre um verniz transparente sobre uma dramaturgia pesadamente tradicional, com arcos traçados com tintas religiosas. Para todo garoto fascinado por ônibus, é necessária uma carência passada, um pai motorista que ele não chegara a conhecer. Para todo pecador, há uma luz de redenção. O desejo de alinhamento ao fluxo contemporâneo se choca com essa dramaturgia pesada, essa organização causal que – embora não necessariamente problemática em si – destrói o filme que Walter Salles e Daniela Thomas têm a vontade de aparentar. Apesar de momentos isoladamente fortes, assistir a Linha de Passe é como ver um sujeito que caminha pela rua, sem perceber que saíra de casa calçando sapatos invertidos.

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Renata Gomes

Linha de Passe parece anunciar um novo e promissor caminho no cinema de Walter Salles. Talvez mais maduro, de mão menos pesada, menos focado num enredo didático, mais generoso na construção dos personagens, a partir dos quais emerge tanto uma história sem arestas óbvias, quanto uma linguagem menos auto-referente (no mau sentido da expressão). Linha de Passe consegue escapar tanto do paternalismo, quanto do cinismo em seu olhar a uma certa periferia, seguindo a linha de alguns filmes paulistanos recentes. Fica, contudo, a incômoda dúvida: não seria a guinada também o cumprimento de uma agenda, que se afasta do morro carioca para olhar uma nova pobreza, somente para também se esvaziar logo adiante? O filme, encerrando-se em si mesmo, não depende dessa resposta, mas fica aqui o desejo: tomara que não.

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Paulo Santos Lima

O que faz com que este novo filme de Walter Salles soe tão além de Abril Despedaçado ou Diários de Motocicleta? A idéia de mudança e busca permanecem potentes. Idem a saída fácil do seguir em frente, que é, efetivamente, o modo mais seguro com que Salles conclui suas histórias, que sempre se sustentam sobre a frágil bolha na qual estão seus personagens e suas rasas e diretas motivações. Há o rompimento com certos temas cromados pela cinematografia nacional, como o morro ou o sertão, mas a fidelidade ao registro do "outro" se mantém. Talvez o que torna Linha de Passe o "melhor WS dos últimos tempos" é justamente a adoção de uma pátina que corresponde mais ao que se tem feito no cinema paulista dos últimos anos, com alguns dos filmes usando a matéria-prima da experiência em estado bruto e instantâneo, meio "a vida como ela é", para fins escusos. Linha de Passe seria, talvez, um Contra Todos do bem. Ou uma revisita ao universo de um Os 12 Trabalhos. Ou Salles buscando o cinema do seu tempo, ou o seu tempo, e cujo resultado surge de forma elegante, até, mas bastante atrasado. O tempo perdido para um cineasta? Pela busca empreendida por Salles, não. Mas o filme, enfim, é perdido na espiral do cinema.

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Francis Vogner dos Reis

O filme de Salles me parece ter um problema de foco, e não é da câmera. Há um medo em se tomar um rumo, uma reta, em se fazer escolhas. A coisa fica abrangente, fala de todos e não fala de ninguém. Gosto muito da parte do evangélico, inclusive é a única porção do Linha de Passe que traz uma real novidade ao cinema dele: fatalismo, determinismo não são questões para a fração "evangélica" do filme – existe outra coisa, não sei bem qual é, mas é mais forte. Mas o pecado aqui é a necessidade da abrangência, é o fato de não saber o que é essencial. Isso sabota a ficção que precisa de um rumo, uma ascese, de escolhas. A ficção não parece possível para certo cinema brasileiro. Existe uma coisa, não sei se é "responsabilidade" ou covardia, que joga água no leite de certos filmes. Isso é uma bela merda.

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Julio Bezerra

Linha de Passe traz as marcas essenciais da obra de Walter Salles: personagens em busca de recomeços; a ausência paterna como tema e alegoria; o olhar humanista; o realismo seco no que relata, porém doce no como relata; e a atenção às agruras sociais brasileiras. É, ao mesmo tempo, talvez seu filme mais coeso e delicado. Em primeiro lugar, abre-se espaço para o humor; em segundo, não se trata mais de um cinema ascético. Salles (com Daniela Thomas) explora com mais desenvoltura os espaços, os corpos, seus fluidos e sentidos. Em terceiro, Linha de Passe respira mais livre. O filme não parece oprimido, seja pelo virtuosismo técnico, seja por uma missão humanista. Peguemos Cleusa, por exemplo: ao invés de se transformar em uma heroína cheia de garra, como poderíamos esperar de outros filmes de Walter Salles, a personagem é simplesmente humana. Ela também não é um elemento agregador dentro da família, muito pelo contrário. Tudo no filme funciona na ordem do indivíduo. Ainda assim, é preciso dizer, o final sofre uma queda de energia.

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Fabio Diaz Camarneiro

Linha de Passe está permeado pela idéia da maternidade. O cenário é uma São Paulo um tanto inóspita: o único espaço público de convivência é o estádio de futebol. O resto, um mar de concreto de onde o ônibus de Reginaldo parte sem destino, fugindo talvez em busca desse Brasil que ainda não nasceu. A barriga de gestante de Sandra Corveloni concentra a espera pelo que ainda não veio, pelo que ninguém sabe o que será. Essa espera, e a incerteza, são os problemas dos personagens: o filho que não nasceu, a espera pelo salário no fim do mês, a incerteza se o emprego vai durar até a semana seguinte... As formas circulares dominam o filme: a barriga da mãe, a bola de futebol, a roda da motocicleta, o volante do ônibus. Símbolos de caminhos que parecem não sair do lugar, mas que tentam escapar de seus destinos. Espécie de obsessão do cinema de Walter Salles, a procura do pai está lá. Como em Central do Brasil, há uma cena em que personagens “anônimos” dizem nome e sobrenome em voz alta (os remetentes das cartas em Central do Brasil, os candidatos à peneira de futebol em Linha de Passe). A importância do nome próprio tem paralelo com o batismo dos crentes: a esperança de que, encontrando-se um nome (e encontrando-se um pai), as dúvidas sobre o futuro desaparecerão e aquilo que está esperando para nascer poderá, finalmente, vir à luz.

Setembro de 2008

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