in loco - cobertura dos festivais
Linz - Quando Todos os Acidentes Acontecem,
de Alexandre Veras
(Brasil, 2013)
por Raul Arthuso

Segredo do comum

Uma das idéias que mais ressoaram em Tiradentes este ano foi a oposição entre mostrar e dar a ver. Ela pode, de certa maneira, ser encaixada dentro do debate quanto ao cinema de mise en scène, de orientação, de significação, em oposição a um cinema de fluxo, de desorientação, volátil. Linz – Quando Todos os Acidentes Acontecem se alinha claramente a este segundo tipo de cinema. É uma aposta na efemeridade da narrativa, na distensão do tempo, na articulação do plano pela conjunção rigorosa da plasticidade do quadro e do som, na articulação da montagem pela fluidez e não pelo sentido. Como indica o título, Linz... se constrói pela lógica do acidente, o casual, o efêmero, uma organização que pressupõe certa dose de opacidade temporal e mistério, noções muito caras a parte da produção recente do cinema brasileiro (Cao Guimarães, as produções da Teia). A imperfeição é um deslocamento estrutural que tem sido tomado como valor no discurso de diversos cineastas atualmente.

Por sua vez, não apenas o filme, mas o Linz-personagem se desloca. É mais um errante na galeria de corpos em deslocamento no cinema brasileiro. Este é o único absoluto de Linz...: o errar, em todos os sentidos assumidos por esse verbo. Por isso mesmo, trata-se de um filme irregular, pois galgado em certo deslocamento de um norte orientador, perdido dentro de sua aventura pelo plano quase auto-suficiente, a montagem espraiada pelo fluxo dos movimentos no plano, e maravilhado na construção de uma sensação. Um plano resiste, então, durante toda a projeção como uma espécie de cartografia do filme: no final da sequência de abertura, Linz se vê sozinho num grande bunker de areia, com o forte vento que balança seu cabelo longo. A câmera abandona Linz e faz uma volta completa no eixo, movimento no qual só se vê areia e vento no horizonte. Esse giro em falso, que, por um lado, marca os dois elementos constitutivos do espaço (a areia e o vento) como força-motriz do andamento do filme – esses elementos estarão em cena como entidades –, deixa claro que Linz e seu ator são princípio e fim da narrativa.

O corpo esquálido e repleto de tatuagens de Dellani Lima é como um modelo ao gosto bressoniano, e não age no sentido clássico da dramaturgia... é levado pela força do vento, a plasticidade da areia e uma onisciência cujo sentido escapa. Em vez de sentir um deslocamento que leva a algum lugar, fica a sensação de um acaso, certa aleatoriedade que conduz Linz num deserto existencial onde qualquer coisa que não se movimente é soterrada, persistindo apenas na memória. Como uma das tatuagens no corpo de Linz, emprestada do corpo de seu ator, o filme se faz para e pelo “segredo do comum” – cujo ponto alto é a cena em que Linz lê a carta de um desconhecido sentado num quarto vazio, enquanto o vento faz bater a porta da casa, ritmando a leitura da qual nunca é dado o sentido, nem as palavras que a carta contém.

Essa busca pelo “segredo do comum” não é muito distante do que o próprio Alexandre Veras já fizera em As Vilas Volantes – Verbo Contra o Tempo, filme em que o visual e o sonoro são armas para aproximação com certa experiência de estar naquele lugar, ainda que seja impossível pertencer a ele. Essa “experiência” é fundamental, pois ela calcifica o filme, sustenta a errância de Linz que, não podendo entender este espaço, muito menos fazer parte dele, só pode dissolver-se como forma de verdadeiramente estar nessas dunas e nesse vento. Fica irresistível pensar em Linz... como o lado B de As Vilas Volantes...: uma obra que não ressignifica, visto que é impossível apreender significação, mas complementa certas buscas já esboçadas no documentário.

Por outro lado, Linz... é um giro em falso e, na ficção mais que no documentário, essa evidência é mais sensível. Diante do dispositivo-cinema – a sala escura, a tela grande, a amplificação do som – o nível de atenção se intensifica. Há uma personagem – um sentido, portanto – que a todo momento teima em não ser decodificado, uma teimosia mais estética que moral. Linz... nesse ponto se aproxima do cinema de Lisandro Alonso, do esvaziamento da narrativa que progressivamente esvazia a personagem, o plano, o cinema. Afinal, por que Linz se desloca? O que se desloca com ele? Como em Liverpool – o cúmulo do cinema de Alonso – Linz... não está interessado em levantar qualquer pergunta, pois um questionamento pressupõe um desejo ou a possibilidade de resposta, decodificação e significado. Linz... é um filme do deslocamento, sugestão, sensibilidades e, possivelmente, só isso. É um giro em falso, sem dúvida, mas um giro em falso sem dúvidas é que faz esse giro interminável.

Janeiro de 2013

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