emulando

Lisa, o diabo, as marionetes
por Luiz Soares Júnior

Lisa e o Diabo (La casa dell'esorcismo/Lisa and the Devil, 1973) é o filme mais esplendoroso de Mario Bava, um dos grandes diretores (mais sobre ele pode ser lido aqui – em inglês) essencialmente ligado a um gênero advindo da Itália: o giallo. Aqui, cada imagem, envolta numa aura de artifício e música, transfigura o objeto numa espécie de fascinação que tem sua origem no aparato operístico. Estamos no limiar de um mundo que se confunde com o das crianças (o mundo das imagens puras, sem conexão causal significativa entre si), um mundo primeiro.

Ao mesmo tempo, os meios que nos permitem o acesso a este mundo de transe são extremamente artificiais, francamente expressionistas. E a grosseria de certas seqüências, especialmente os assassinatos, serve para realçar, com um requinte calculado e irônico, o artificialismo da construção. Ou antes: da representação. Pois Lisa e o Diabo, como todo grande filme, é teatro puro, da primeira à última cena; e teatro lírico, teatro grandiloquente, cadenciado, soturno e mórbido como o melhor do gênero. Com um olho na boca de cena e outro nos bastidores, Bava nos desvela os segredos de papier-maché, as convenções de néon desta superfície lúdica, onde as paixões humanas são o contraponto necessário ao cadre demiúrgico do criador.

Desde os créditos, o jogo e suas “armações” são, literalmente, postos na mesa: o Diabo joga cartas que contêm os rostos dos personagens, marionetes de uma estratégia de manipulação que se desdobra. Temos Telly Savalas como o Diabo carregador de mortos, figura sinistra que uma turista casual (Elke Sommer) encontra primeiro num afresco na Espanha, para logo depois ter o desprazer de reconhecer mais adiante. O sujeito é o mordomo de uma mansão gótica, e contribui, com a confecção de marionetes sinistras, para o desenrolar de estranhos ritos de morte e ressurreição, encenados pela velha condessa (uma hierática Alida Valli) e seu filho.

Bava assume a função do diretor como “marionetista-mor”, mas não apenas como aquele que dá as cartas da trama; o enredo de Lisa e o Diabo é o conto de fadas mais anódino e insignificante que se possa imaginar, é a superfície mais descaradamente plana, onde Bava pinta, borda e desenha uma série de arabescos, destinados a suscitar o que os românticos chamariam de momentos privilegiados. É como se Bava omitisse as conexões lógicas e dramáticas, e nos deixasse apenas com uma corrente ininterrupta de impressões feéricas diante dos olhos.

Assim como na lógica dos contos de fadas – que, não por acaso, é a forma de narrativa que mais chamou a atenção da Psicanálise -, ficamos com os momentos nos quais a vida esposa o imaginário, e assim as distinções habituais da razão calculista cedem o passo a uma vasta e cintilante unidade, na qual faíscam os vermelhos-ocre, os reflexos de néon esverdeado, o claro-escuro do grand guignol do mestre Bava. Na imagem, temos a cristalização não apenas dos desejos – mortíferos, no caso – dos personagens e do diretor, mas sobretudo do aparato de cena no qual esses desejos se refletem e bailam. Ao afastar as cortinas e nos mostrar o maquinário da encenação, Bava flerta com o grotesco – mas o ultrapassa em direção a uma visão mais lúcida sobre o papel da mise-en-scéne.

Representar, “pôr em cena” consiste não apenas em mostrar, mas sobretudo situar o objeto em uma determinada atmosfera, encadeá-lo com outros objetos e situações possíveis, perverter-lhe o contexto original e redutor, é tecer uma trama mais vasta na qual este objeto desenvolva suas potencialidades simbólicas. Operação alquímica semelhante ao mecanismo do sonho, no qual os objetos da vivência se transfiguram não por uma suposta mudança de natureza, mas de posição em relação aos outros, por pequenos e decisivos deslocamentos; representar, assim como sonhar, é re-situar, é colocar sob uma outra perspectiva, é mostrar que vida e teatro, ao contrário do que se convencionou, são intercambiáveis, mutuamente enriquecedores e reflexivos. Em uma cena emblemática deste gênero de perversão, o uso da câmera e a intensidade da música transformam uma figura de mãe moribunda num vampiro saído das coxias de um mundo decadentista, condenado a desaparecer.

Bava “re-situa” o conto gótico, os elementos camp, coloca-os numa ordem de sentido e de representação diferente da habitual: temos agora um conto de fadas assombrado por pulsões, temos um caleidoscópio de delírios, temos um majestoso cortejo de fantasmas, acariciados por uma música sinuosa – o Concerto de Aranjuez em hipnóticos e coloridos arranjos. Temos um mundo espectral, onde cada detalhe se refrata e converte em seu contrário, colcha de retalhos exponencial e preciosista.

Representação, para Bava, é vida transfigurada por fantasia, é palco como plataforma de significação e vivência, é a confusão destas dimensões num universo sintético, ambíguo e especular. Essa “perversão” do objeto, essa “re-situação” em contextos que o enriquecem, contestam, dialetizam – no caso, um conto gótico narrado como se fosse um intermezzo lírico do século 19 – é a lição maior desse mestre dos fantoches.

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