sessão cinética
Lola Montès,
de Max Ophüls
(França/Alemanha/Luxemburgo, 1955)
por Juliano Gomes
O
mundo como dança
Assim como A Regra
de Jogo de Jean Renoir e Ouro e Maldição
de Stroheim, Lola Montès pertence àquele
grupo seleto, entre as maiores obras-primas de uma determinada
arte, que de alguma maneira previram sua própria tragédia.
A derradeira e mais ambiciosa produção de Max Ophüls
(foi o filme francês mais caro realizado até seu
ano de lançamento) encena e antecipa o drama de uma imagem
que, de tão violentamente livre e bela, não pode
ser suportada pelas estruturais sociais. O filme teve inúmeros
problemas no seu lançamento, sofreu diversos cortes, sobrevivendo
numa versão que foi possível recompor algumas décadas
depois de sua feitura. Lola é como o diretor Ophüls:
a figura da beleza absoluta, excessiva que corrompe e dinamita
os espaços pré-estabelecidos. O belo é o
que instabiliza, o que cria movimento, atenção e
tensão: isto ameaça o que quer conservar, permanecer,
tornar estáticos os fluxos da vida no tempo. Na sua obra
final, o cineasta alemão nos mostra a sua paixão
própria: a narração da condição
trágica de sua obra e de sua protagonista, ao mesmo tempo
- num duplo movimento, que é a sua mais característica
assinatura.
Um procedimento é repetido pela câmera muitas vezes
ao longo do filme: ao início da cena, um movimento de câmera
se realiza para um lado, e ao final desta mesma cena, o mesmo
movimento é realizado no sentido oposto. Há aqui
uma grande série de pares e de oposições
além das direções dos movimentos de câmera:
presente e passado, verdade e mentira, vida e aparência,
espetáculo e essência, moralidade e amoralidade,
amor e dinheiro. E a resposta de Ophüls é: Lola é
aquela que transita, sua natureza é a do movimento, não
se pode representá-la por nada que se fixe. Sua estrutura
emana do circo pois o modelo aqui é das chamadas atrações,
onde o efeito tem um valor em si, de movimento puro, de plasticidade
que independe do referente ou do que se precede ou sucede. Atração
é movimento em curso. Trata-se, então, de borrar
todos esses limites. O circo invade a lembrança, e tudo
se invade reciprocamente, erotizando, sexualizando a mise
en scène. O filme é todo ele povoado de véus
e objetos que obliteram nossa visão, o que intensifica
o mistério e não-visto em cada imagem, marcando
sempre um não-ver em cada ação, desfilando
em cada situação as mais variadas possibilidades
de opacidade. A abundância de ornamentos sempre excede:
ao quadro, a narrativa, ao picadeiro, há sempre mais a
mostrar (próximo a Fellini e Visconti aqui). Todo mostrar
trata também de esconder, essa é uma das reversões
fundamentais de Lola Montès (de quem ao final
parece que sabemos ainda menos). Aqui se mostra muito e se esconde
na mesma proporção.
O
pomposo carrossel de Ophüls é uma espécie de
corte que explora as diversas camadas dos acontecimentos para
justamente mostrar sua falta de centro. Vai-se para um lado e
para o outro. Nunca se avança. Sua forma é circular.
Se Lola não sabe dançar, a narrativa dança
por ela. Os vaivens são a forma e a estrutura de Lola
Montès, são seu movimento fundador. Essa forma
é também trágica. O trajeto, a forma, já
está dada inicialmente, o que se seguirá é
seu reverso. Cada ponto é também uma lembrança
de seu contrário, e assim sucessivamente (não por
acaso é abundante a presença de espelhos no filme;
seu funcionamento é de fato uma reflexão infinita,
como dois espelhos face a face).
Ophüls tece um tratado sobre a perfeição e
sua inviabilidade diante do mundo à maneira como este se
formou, e assim comenta seu trajeto como cineasta e o caminho
tortuoso de sua obra máxima em um mundo que não
a pode compreender, pois a compreendia demais. Uma obra que compreendia
em excesso o culto a imagem que só faz reforçar
seu avesso, a verdade (dualidade bastante atual, como
hoje age sob as noções de autenticidade e espontaneidade,
por exemplo). O espelho perfeito talhado por Ophüls de um
mundo que emergia, de uma forma de se relacionar com a imagem,
era insuportável, pois este era justamente seu reflexo
mais justo, e sem nos dar respostas fixas. A verdade, o belo,
como algo que foge, por definição. Não há
nada atrás das aparências. Não há essência
que se opõe ao espetáculo. Há imagens, umas
entre as outras, se combinando, variando em opacidade e legibilidade,
em constante locomoção. Se há imagem, há
mundo, essas dimensões não se negam, mas se afirmam.
Aqui, Ophüls criou um mundo perfeito das formas, em sua rara
exuberância, que narra sua própria destruição
e fracasso, com a mesma magnitude. É justamente essa intermitência,
que invade e funda o filme, que caracteriza a rara forma de liberdade
que nos é dada a ver do primeiro ao último fotograma
de Lola Montès.
Maio de 2011
editoria@revistacinetica.com.br |