O Silêncio de Lorna (Le Silence de Lorna),
de Jean-Pierre e Luc Dardenne
(Bélgica/Inglaterra/França/Itália/Alemanha, 2008)
por Francis Vogner dos Reis

Lorna silenciada

Por um lado, O Silêncio de Lorna representa um passo à frente com relação ao filme anterior dos irmãos Dardenne, A Criança, isso porque seus primeiros quarenta minutos dão vazão a uma liberdade vital na orientação da ascese da personagem Lorna, tornando muitos momentos uma demonstração sensacional de um cinema que tem nas pulsões do corpo sua substância (e seu coração). Diferente, portanto, de A Criança, onde tudo isso era falseado e autofágico, comendo pelas beiradas só para, por fim, justificar o procedimento de seus diretores como uma verdade em si mesma, o que fazia de seus personagens (seus corpos) zumbis humilhados e ofendidos. Existe na primeira parte de O Silêncio de Lorna uma graça (não teorizável, apesar do pragmatismo – que sim, é necessário) que faz tanto da personagem Lorna quanto de Claudy, seu marido viciado em drogas, corpos que reagem ao contexto, testando limites em que se vê a câmera mais preocupada em perscrutar o desespero do que desenhar uma trajetória como foi feito em A Criança.

Claro, a marca dos diretores está lá: nos cortes, na organização da ação, no batimento emocional das cenas, na textura de todas as coisas – das cores ao drama – que nos tranquiliza que aquele não é um filme de subtexto ou feito para servir às suas “questões” gratuitamente. Dar primazia ao debate social aqui é colocar o filme na gaveta para vomitar asneira. A miséria humana, seja de caráter social ou existencial, está marcada na violência com que os diretores permitem que aquele universo venha até nós, e aí já não é coisa de pensador ou militante, mas de cineasta: a busca de fazer de cada escolha um ato de violência, seja a cabeçada voluntária de Lorna na parede, seja na ridícula condição enferma e inconstante do corpo de Claudy e a crise deles, sempre, com o espaço em que estão. Se aos Dardenne é atraente a história da garota albanesa que se casa com um junkie para conseguir cidadania belga e que ao mesmo tempo é achacada por gângsters, é porque o que lhes interessa é a ameaça constante ao corpo, seja essa ameaça referente ao seu lugar (Lorna é um corpo estranho em situação idem, uma estrangeira com falsa união civil), às vicissitudes do uso das drogas, às ameaças constantes dos gangsters que lucram com casamentos arranjados, e etc.

Caso os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne conseguissem manter essa vigilância dos primeiros quarenta minutos – o que é difícil porque fica no limiar entre o trágico e o grotesco – teríamos um de seus mais belos filmes. Mas, não: a personagem Lorna perde sua vitalidade gradualmente e o filme, como um todo, vai junto com ela para o buraco. Aí, como já era o caso em A Criança, O Silêncio de Lorna acaba sendo condenado a uma “imobilidade” causada, não exatamente pelo esgotamento de um projeto estético, mas pela saturação deste. Uma camisa de força que se sobrepõe ao estilo, borrando inclusive tudo o que o de mais forte o filme conquistou até sua metade. É quando os Dardenne lançam mão de sua “estratégia” – isso mesmo, estratégia, o que não deve ser confundido com procedimento (que é um esforço formal e dialético) – e abrem mão de dar prosseguimento à ascese de sua personagem para engendrarem a personagem no irreversível de suas escolhas. Uma gambiarra que resulta em um arranjo entre o que está no papel e a construção disso, efetivamente.

Cai-se em um beco sem saída. Depois da morte do marido junkie o filme se esforça absolutamente para fugir do assunto, do drama sério que até então parecia ser questão primordial, para fazer um joguinho de crueldade com as consequências das escolhas de Lorna. A montagem cheia de elipses é uma estratégia esperta, mas imoral: evita o constrangimento de dar substância ao crescente de crueldade na condição (e no universo) de Lorna e de seus algozes, entre eles a própria consciência da personagem. Essas elipses poderiam ser uma maneira de ir direto ao que interessa, o que seria bom se o filme tivesse uma objetividade dramática, mas como não tem (e não quer ter, o que em princípio não é problema algum), acaba virando desculpa e fuga dos assuntos mais espinhosos como o assassinato (absolutamente ausente, sem motivo algum) e a consciência da atriz.

Naquele que continua o melhor filme dos Dardenne, Rosetta, esses “saltos”, vez ou outra, eram possíveis porque eliminavam qualquer possibilidade de psicologia social vagabunda e recusavam ver a personagem presa em uma cadeia de causa e efeito, o que levantava a questão de “o que existe entre uma cena e outra?”. Em O Silêncio de Lorna não é colocado em questão o que se estabelece nesses intervalos, há simplesmente uma supressão do que o filme tem de mais sério, e, não, isso não é “buraco de roteiro”, mas sim uma má consciência que se apóia nas lacunas como estratégia de omissão, o que leva por terra esse clichê da cumplicidade deles com seu material, seus personagens e etc. O filme fala de escolhas, mas tem medo de fazê-las. Da beleza à canalhice, uma pena. O Silêncio de Lorna acaba sendo um contrasenso.

Outubro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta